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Anjos da vida

Novas memórias sensoriais do subúrbio do Rio

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Reprodução/PPP Facebook

Segunda-feira, dia primeiro de janeiro. Subúrbio carioca do Méier, temperatura amena, tempo nublado. Na véspera foi festa, expectativa. Depois o dia parece parado. A tarde é silenciosa e o tempo é quase sólido, palpável.

Ainda há pouco lembrava e contava para meu filho sobre o vendedor que passava em nossa velha rua com sua carrocinha azul. A depender da época do ano, variava o pregão. No verão escaldante ele gritava com sua voz, que foi louvada em um de meus poemas como uma “voz agreste”:

– Sorvete natural da fruta, é o sorveeeete… É o saborooooso!

E alongava a vogal no meio das palavras. Depois, dava suas buzinadas na buzina manual de campana cromada e comprida, apertando-lhe a coifa de borracha avermelhada.

No clima mais suave, lá por abril, maio, ele trocava de produto e vinha vendendo doces.

– Olha aí o cuscuz, cocada e quebra-queeeixo! Bolo de cenoura, chocolate e torta. É a cuuuuca…

E toma-lhe buzinada.

A carrocinha vinha lenta, empurrada pelo robusto homem que nunca mais vi. Onde estará? Sei que ele criou dignamente sua família com o rendimento que a sua venda de sorvetes e doces lhe proporcionava.

Eram outros tempos. De um silêncio muito maior nas ruas da vizinhança, cortado eventualmente pela passagem de um ou outro carro, de ônibus e desses vendedores errantes.

Algumas vezes eu chamei o pregoeiro e comprei, em ambas as épocas do ano.

Os sorvetes eram variados. Lembro do de coco, o de manga, o de creme. Este último era a contradita do vendedor, porque não era de fruta nenhuma. Mas era meu preferido.

Sorvia-o numa colherzinha de pau, diretamente de um copo de plástico branco, mais firme do que esses descartáveis em que a gente bebe água hoje em dia, e o sabor distante do creme ia descendo pela boca, enquanto os dentes entravam em contato com diminutas partículas de gelo.

Os doces eu não experimentei todos. Lembro de haver comido o quebra-queixo, que vinha quente e viscoso sobre um pedaço quadrado de papel grosso, que ele já trazia cortado para servi-lo. A calda de açúcar em ponto grosso misturada aos pedacinhos de coco era deliciosa no início e enjoativa no final. Lembro de preferir quando ela estava ligeiramente passada do ponto, meio queimada. Também provei do cuscuz, com sua massa polvorenta e doce de milho que mal resistia à minha boca infantil.

Não guardei na lembrança o nome do homem da carrocinha de sorvetes e doces. Lembro dele de óculos, largo, de voz potente, sempre gentil.

Já de outro vendedor constante na minha rua e das da vizinhança eu lembro o nome: era o “Seu Otávio”. Calvo, tinha bigode, diastema nos dentes da frente, olhos claros se não me engano.

Tinha, eu creio, um pregão próprio que passava bradando, mas eu não me recordo exatamente qual era. Vendia balas industrializadas. Na infância primeira eu era absolutamente proibido de mascar chicletes. Não lembro se por recomendação de algum cruel dentista ou se porque minha mãe temia que eu engolisse a massa elástica e colorida e sufocasse ou algo assim.

Um dia, encontrava-me na frente de casa com algum primo e meu avô paterno, o velho Carlinhos. Brincávamos sob o sol. “Seu Otávio” vinha chegando perto e eu pedi para meu avô que me comprasse chicletes. Ele, obviamente, negou, já devidamente instruído por sua nora. E eu, chateado, chorei e reclamei muito.

É uma memória remota, não lembro do desfecho. Talvez meu avô haja oferecido outras guloseimas disponíveis na venda ambulante de “Seu Otávio”, e eu recusava a todas, obcecado que era pela meta de mascar um chiclete. Esta conquista veio tempos depois, quando minha irmã me deu um mínimo pedaço de um que ela ganhara, de tutti-frutti. Tinha, seguramente, menos que seis anos de idade.

Outros profissionais eram constantes na minha rua naqueles tempos, ganhando a vida com seus trabalhos. O amolador de facas, que também consertava cabos de panela, vinha anunciando sua passagem com um ruído muito característico produzido quando passava uma lâmina de metal pela imensa roda de seu aparelho amolador.

Tinha preso à cintura um cordão cheio de facas e ferramentas penduradas. Era fascinado por aquele estranho objeto, a roda de amolar, e, certa vez, quase comprei uma num antiquário. Fui demovido da ideia por minha falecida esposa que, a despeito de concordar com a compra de outras antiguidades eventuais, achou a roda de amolar um verdadeiro trambolho. Ainda não desisti de ter uma…

Outro vendedor que se anunciava por um característico ruído era o de tringuilim. Para os não-iniciados em carioquices, tringuilim é uma espécie de biscoito doce, com uma massa à base de trigo, muito fino e quebradiço, vendido pelas ruas e praias do Rio de Janeiro. Uns amigos de fora da cidade a quem o mostrei, disseram que o tringuilim se assemelha a beiju de tapioca, mas não tem nada a ver.

Acho que o nome vem associado ao barulho produzido por um retângulo de madeira guarnecido de uma espécie de mola metálica que o vendedor vai levando pela mão e balançando, produzindo um tilintar, para advertir de sua passagem. Não raro o vendedor de tringuilim também negociava algodão-doce ou pirulitos de calda de açúcar. Tringuilim tem se tornado uma iguaria rara.

Pela rua suburbana e tranquila de outrora também passavam vendedores de vassouras, bichos de pelúcia que eram pagos com joias de ouro quebradas e inúteis, de redes e outros produtos que garantiam a subsistência de diversas famílias.

Outra recordação remota é de uma Kombi, de uma instituição de auxílio a pessoas com deficiência, que levava um alto-falante acima, do qual soava uma voz cavernosa: “compre um saquinho de balas daqueles que já não podem andar…” Atrás da Kombi, vinham homens em cadeiras de roda com balas que iam vendendo pelo caminho.

Para minha compreensão de criança, havia um toque de crueldade em obrigá-los a andar atrás daquela Kombi, sob o sol, conduzindo suas cadeiras de roda, especialmente no último trecho de minha rua, que tem ligeira inclinação. Pensava ser mais justo que eles se deslocassem dentro do veículo utilitário.

Hoje não ouço mais nenhuma dessas vozes, não vejo mais tais vendedores. Creio estarem praticamente extintos. O tempo passou e as coisas foram mudando, embora várias outras características do Méier e suas adjacências ainda não tenham sido perdidas.

Se algum leitor conterrâneo souber que fim levaram o “Seu Otávio” e o vendedor da carrocinha azul, peço que façam contato com este autor. Tenho grande curiosidade de saber.

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