Em família
Novo álbum de João Bosco tem participação dos filhos
Publicado
emAdriana Del Ré
Mano Que Zuera, novo disco de João Bosco (MP,B Discos/Som Livre), lançado pelo músico após oito anos sem um trabalho de inéditas, é reflexo de uma ação em família. A alma do disco, claro, é ‘joãobosquiana’ em toda sua essência, mas a presença de seus filhos está ali, em completa evidência ou nos pequenos detalhes. E João se enche de orgulho ao falar da participação dos dois. Seu filho, o escritor, compositor e filósofo Francisco Bosco, é antigo parceiro do pai na música. Começou no disco As Mil e Uma Aldeias, de 1997.
Originalmente, João Bosco faria aquele álbum com Waly Salomão e Antônio Cícero, mas, como a entrada dos dois no projeto não foi adiante, Francisco chamou para si a parceria com o pai naquele trabalho.
Vinte anos depois, e essa parceria entre pai e filho se mostra ainda mais consolidada: além da concepção do novo disco assinada em dupla, das 11 faixas – entre inéditas e algumas belas releituras –, 5 delas são de autoria de João e Francisco Bosco.
Como a emblemática Onde Estiver, que foi escolhida, não por acaso, como single desse trabalho. João apresentou ao filho uma música que ele achava que contava uma história, ao estilo de Bob Dylan – e que fugia de seu universo habitual, ligado às canções sincopadas, africanas ou sambas. Pediu para Francisco colocar letra. E, para surpresa de João, ele devolveu aquela música, Onde Estiver, com a história da relação entre pai e filho. “Onde estiver, sempre trago vocês/Dentro do meu coração/Onde estiverem, me levem também/Somos um só coração”, assim começa a canção.
“A gente ficou muito tomado por essa canção. Primeiro, porque, quando o Chico era muito jovem, não pude ser aquele pai que a toda hora dá a mão para o filho atravessar a rua, porque eu estava na estrada, viajando. O Chico nasceu em 1976, ano de Galos de Briga, eu já havia feito Caça à Raposa, eu estava na batalha de viajar com meu violão. E, muitas vezes, a Ângela, a mãe, ia comigo porque ela me ajudava muito, ela tomava conta de mim, do meu trabalho”, conta João Bosco, em entrevista ao Estado. “Acho que tanto ele quanto a Julia (Bosco, a filha) devem ter passado um tempo sentindo falta da nossa presença. Aí convocávamos os tios para preencher essa ausência. Quando ele fez essa canção, fiquei feliz porque acabamos preenchendo um pouco aquela ausência de antes. Eu senti isso do mesmo jeito quando a Julia cantou a canção comigo no disco”, completa João, referindo-se à faixa Ultra Leve, que tem participação especial da filha nos vocais.
E, por causa dessas ausências, em algum momento, incomodou estar na estrada? “Não me incomodou em nenhum segundo e eu faria isso tudo novamente. Gosto da malandragem, e eu ouvia muito dos malandros: o que importa é o que vai dar na continuação; na continuação, tem de dar você. Ou seja, você tem que conseguir atravessar todas essas intempéries, todas essas pedras no meio do caminho e tem de sair lá na frente”, responde o compositor, cantor e violonista mineiro. “Você vai ver que muita coisa que não conseguiu lá no início, você pode lá na frente consertar, refazer. É como se você pudesse compensar aquela perda, aquela falha. Sei que agora estou tendo a oportunidade de resolver essa questão, e está dando certo. Eles já não pensam mais naquele momento, têm um pai muito próximo agora, perto deles.”
Ainda sobre Onde Estiver, a canção tem um outro elemento ‘familiar’, revelada por João: o ‘dadá diê’ que o compositor incluiu nos vocais finais da música foi tirado das brincadeiras ao violão com a neta, Iolanda, de 5 anos, filha de Francisco. “Fico repetindo essa melodia para lembrar que é um segredo nosso”, explica João.
Já a canção Duro na Queda faz lembrar que a parceria de João e Aldir Blanc continua a pleno vapor – isso desde a década de 1970. É inédita, mas, à primeira audição, há quem possa jurar que seja um clássico de Bosco e Blanc. “É de uma produção mais recente, e foi feita a partir de um texto que o Aldir me mandou. Fiquei lendo Duro na Queda, costumo andar com as canções durante um tempo, pelas ruas, viajo”, afirma João. “Fui musicando esse texto e ele foi se transformando num samba, mas ele flui muito naturalmente. Tem essa coisa desse samba clássico do subúrbio carioca, isso é uma coisa que a gente fez muito, aprendeu, tem uma certa experiência nisso. Difícil ver quem é que fez primeiro (a canção). A gente entende que nossa parceria é um destino que se realizou.”
Da parceria com Aldir Blanc, João Bosco resgatou ainda uma antiga composição da dupla, João do Pulo, que, no disco, ‘deságua’ na versão instrumental de Clube da Esquina n.º 2 (Milton Nascimento, Lô e Márcio Borges). “Eu não tinha intenção de regravar o João do Pulo, que eu já tinha feito no Cabeça de Nego (disco de 1986), e de uma maneira muito ousada, porque foi um samba-enredo que gravei a capela e tinha umas palavras que eram sussurradas, murmuradas, quase que em segredo, que era um pouco do clima daquela época”, diz. “Quando eu estava trabalhando esse disco, essa música me veio de novo, mas não me veio sozinha: já me veio com fragmentos de Clube da Esquina n.º 2.”
Para o músico, o ‘João de sangue afro-tupi’ de João do Pulo, de alguma forma, se conectou à primeira gravação de Milton para Clube da Esquina n.º 2. “Ela não tinha letra, e havia um jeito de ele cantar essa música e aquele batuque que estava nessa gravação original. Para mim, era completamente indígena, eu sentia aqueles índios peruanos, brasileiros. Então, uma música acabou se juntando à outra numa espécie de suíte muito naturalmente, muito intuitivamente.” A versão João do Pulo/Clube da Esquina n.º 2 começa em voz e violão, avança para o samba, com voz, violão, percussão e contrabaixo acústico, até desacelerar novamente em Clube da Esquina n.º 2, num momento intimista, lírico.
Há outras regravações especiais: Sinhá, de João e Chico Buarque, desta vez, num clima cabo-verdiano e muitas cordas, e Coisa n.º 2, de Moacir Santos. “Essa questão do ineditismo, para mim, depende muito do ponto de vista daquilo que as pessoas chamam de ineditismo. Quando você pensa numa canção sua, já feita, ou numa canção de outros compositores que você admira e que considera fundamentais na sua obra, e que você então se empenha em explorar essas canções novamente para descobrir novas possibilidades, acho que isso já é um exercício de criação, e isso funciona como algo inédito.”
No coração de pai de João cabem também os novos parceiros de música. E o disco Mano Que Zuera marca duas estreias: com Arnaldo Antunes, em Ultra Leve, e com Roque Ferreira, em Pé-de-Vento. Bethânia aproximou Roque e João. Já no caso de Arnaldo, “esse já era um encontro marcado” faz tempo. “Já nos encontramos outras vezes, anteriormente, e sempre falamos sobre uma possível parceria.” Uma parceria informal se esboçou nos bastidores de um programa de TV, mas não se desenvolveu depois. Mais recentemente, João estava fazendo uma canção, um bolero meio bossa-novista, e se lembrou de Arnaldo.
Às vésperas de entrar em estúdio, João recebeu de Arnaldo a letra da música, em sintonia com aquele cenário musical criado por João. “É uma canção em que ele mapeia o Rio de uma forma muito bonita, porque ele não deixa escapar nenhum lugar da cidade, da zona sul à oeste, ao subúrbio.” João, então, chamou a filha Julia para participar da faixa. “Por ser uma canção do Rio, achei legal ter uma voz masculina e uma feminina.”
Homenagem – Aos 71 anos, João Bosco comemora também a homenagem que receberá na cerimônia do 18.º Grammy Latino, em Las Vegas, no dia 15 de novembro. “Olho do meu lado e meus filhos estão aí, não estão mais só no meu pensamento, lá na viagem, longe deles. Meus parceiros estão aí, a gente continua trabalhando, produzindo, se falando e também praguejando, porque ninguém é de ferro. Numa situação em que você vive, você tem que fazer a sua análise da vida”, avalia.
E sobre a atual situação do Brasil? Retrocedemos? “Acho que retroceder não há a menor dúvida. Às vezes, a história é assim que funciona. Estamos também vivendo um momento de uma autocensura em função da censura que está existindo não oficial. Isso faz parte do retrocesso. Acho que nem na ditadura militar nós praticamos uma autocensura tão evidente quanto estamos praticando agora”, pondera ele. “Isso está acontecendo no mundo inteiro. Então, temos de ter calma, e, com muita competência e entendimento, fazer voltar aos trilhos em que estávamos antes. Acho que isso é da vida, e a questão é seguir em frente e mudar a história novamente, no sentido que pessoas possam viver dentro de uma situação democrática, tolerante.”