Antes era ficção
Novo desafio da Nasa é criar naves para voarem lá fora
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emSe pudéssemos fazer voar um drone sobre os céus de Marte, seria possível cobrir um território muito maior, com muito mais rapidez que com uma sonda de superfície. Mas projetar um drone apropriado é um enorme desafio.
Em 19 de abril de 2021, um minúsculo helicóptero experimental chamado Ingenuity (“Engenhosidade”, em português) levantou voo no solo de Marte para os livros de história.
Os rotores da máquina autônoma giraram furiosamente na atmosfera rarefeita para produzir impulso suficiente, levando a aeronave até a altura de um prédio de um andar. O Ingenuity planou e depois pousou com segurança, completando o primeiro voo controlado da humanidade em outro planeta. O local da aterrissagem recebeu o nome de Campo Irmãos Wright, em homenagem aos pioneiros americanos da aviação.
Um helicóptero do tamanho de um pequeno carro, chamado Dragonfly (“Libélula”, em português), está programado para dar o próximo passo em meados dos anos 2030. Ele pousará na maior lua de Saturno, Titã, para iniciar a primeira missão exploratória humana naquele satélite.
Em uma hora, o Dragonfly voará mais do que qualquer sonda de superfície já viajou em outro planeta. O veículo em forma de drone com múltiplos rotores voará sobre Titã, pousando por um dia de Titã (equivalente a 16 dias terrestres) para conduzir experimentos antes de voar para o seu próximo destino.
Mas o maior desafio – e talvez a maior oportunidade – da aviação extraterrestre é Vênus, o planeta terrivelmente quente, com seus extremos de pressão, temperatura e atmosfera ácida. Nenhum veículo sobreviveu por mais de 127 minutos na sua superfície similar a ardósia, cheia de rachaduras.
Mas os cientistas estão propondo enviar duas aeronaves para Vênus. Uma, em forma de planador, movida a energia solar, que pode voar indefinidamente pela atmosfera superior e mais favorável do planeta. A outra é um projeto de asa voadora que voará através das condições hostis próximas à superfície.
“O desenvolvimento da tecnologia para poder pousar em Vênus é difícil”, segundo Eldar Noe Dobrea, cientista sênior do Instituto de Ciências Planetárias, na Califórnia (Estados Unidos), que está desenvolvendo os conceitos das missões para Vênus. “A única alternativa é voar pela atmosfera.”
Teddy Tzanetos, tecnólogo em robótica do Grupo de Mobilidade Aérea e líder da equipe do Helicóptero Marciano Ingenuity, já está trabalhando nos projetos para a próxima geração de helicópteros marcianos. “Sabemos o que o primeiro voo dos irmãos Wright trouxe para a humanidade aqui na Terra e acho que seguiremos o mesmo modelo em outros planetas”, afirma ele.
“Eu não havia pensado em uma analogia como essa, mas o Dragonfly é o próximo passo depois do primeiro voo do Ingenuity”, afirma Elizabeth “Zibi” Turtle, que é a principal pesquisadora do Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins. “Ele será o primeiro veículo [aéreo] a transportar toda a sua carga científica de um lugar para outro.”
Como fizeram os pioneiros da aviação polar, os engenheiros da Nasa perceberam como os veículos aéreos poderiam revolucionar a exploração de novos mundos. Máquinas emblemáticas como os veículos de superfície marcianos Viking e Curiosity e satélites como Cassini, em Titã, continuarão a desempenhar papéis importantes na exploração onde houver atmosfera apropriada, mas poderá haver outras opções.
Dirigíveis, helicópteros, drones e até aviões propulsores infláveis, robóticos e controlados (todos propostos pelos cientistas da Nasa), poderão recolher rapidamente dados de alta qualidade sobre grandes áreas da superfície de um planeta, evitar terrenos perigosos, coletar imagens detalhadas que são impossíveis de obter com sondas de superfície ou satélites e observar os alvos das missões de diferentes pontos de vista.
Veículos aéreos como esses podem também ir aonde os veículos de superfície não conseguem, como montanhas, picos e até a superfície inóspita de Vênus. O problema dos engenheiros da Nasa é que o ambiente de cada planeta impõe restrições diferentes sobre o tipo de aeronave, suas cargas e capacidades. E a tecnologia disponível para os engenheiros apresenta restrições similares.
Como na ficção?
Wernher von Braun, projetista do foguete Saturno 5, idealizou o pouso em Marte de um planador hipersônico. O escritor de ficção científica Philip K. Dick imaginou colonizadores humanos em Marte em helicópteros. Os engenheiros da Nasa começaram a buscar conceitos para uma aeronave marciana depois dos veículos de superfície Viking nos anos 1970, cujas características originaram o drone Predator, atualmente utilizado pelas forças armadas americanas.
A atmosfera em Marte tem menos de 1% da espessura da atmosfera da Terra, o que torna muito difícil que uma aeronave consiga levantar voo no planeta. Isso significa, por sua vez, que um helicóptero marciano deve ser muito leve, mas ainda poder carregar suas baterias de íons de lítio, sensores e câmeras, bem como o aquecimento e isolamento necessários para mantê-lo em funcionamento nas frias noites marcianas.
“Se você conseguir resolver todos esses problemas e construir uma aeronave que pese menos de 1,8 kg, você então tem o Ingenuity”, afirma Tzanetos. “Nosso engenheiro-chefe e membros da nossa equipe começaram a examinar a ideia de um helicóptero marciano nos anos 1990, mas a tecnologia ainda não existia. Já nos anos 2010, ela estava lá para os demonstradores tecnológicos.”
A equipe também considerou uma aeronave de asas fixas, mas, em Marte, o helicóptero faz mais sentido porque operaria sem pistas de aviação.
A Nasa tem nove diferentes níveis de prontidão de tecnologia (TRL, na sigla em inglês), que variam de TRL1 (“princípios básicos foram observados e relatados”) até TRL9 (“voo comprovado” em missões de operação).
Nos anos 1990, o tipo de bateria necessário para alimentar o Ingenuity havia acabado de ser descoberto e poucos haviam percebido o potencial de materiais como a fibra de carbono. Da mesma forma, os sensores, peças de computador de baixo peso e algoritmos para fazer a máquina voar ainda não estavam suficientemente desenvolvidos – nem o conhecimento humano da sua construção e voo.
Mais de 20 anos se passaram e agora a situação é diferente. Atualmente, na Terra, drones entregam pacotes e vacinas, além de serem usados para supervisionar plantações e sítios arqueológicos. “Foi realmente a confluência de todas essas tecnologias que veio no momento certo para permitir [a construção do] Ingenuity”, explica Tzanetos.
O Ingenuity realizou seus voos de teste e continua voando. “O principal objetivo era comprovar que ele poderia voar em Marte e conseguimos fazer 19 voos”, afirma Tzanetos. “O maior impacto que podemos deixar para o futuro é continuar a fazer o Ingenuity voar. Cada voo que realizamos com sucesso fornece um tesouro de dados de engenharia que serão fundamentais para as gerações futuras.”
Tzanetos afirma que a equipe também está trabalhando em projetos de helicópteros que possam transportar cargas muito mais pesadas por distâncias muito maiores. “Queremos ter as respostas quando a Nasa fizer as perguntas”, segundo ele.
Titã é o extremo oposto de Marte. A lua de Saturno tem o tamanho de um planeta e possui uma crosta superficial coberta de gelo, sob a qual existe um oceano que cobre todo o planeta.
Ela é terrivelmente fria e lá chove metano. Sugeriu-se que barcos poderiam explorar a superfície da lua, enquanto submarinos explorariam o mar abaixo da superfície e aeronaves voariam pela atmosfera.
“O ambiente de Titã, de fato, é único e apropriado para exploração com equipamento mais pesado que o ar”, segundo Melissa G. Trainer, uma das principais pesquisadoras da missão Dragonfly. Titã tem baixa gravidade e atmosfera densa, o que significa que aviões e helicópteros podem ter tamanho maior, transportar cargas mais pesadas e oferecer mais recursos que em um planeta como Marte.
O ambiente de Titã indica que um helicóptero como o Dragonfly pode carregar a potente bateria nuclear da Nasa, que é necessária para os objetivos científicos da missão, além dos próprios experimentos, do hardware de computador e dos resistentes esquis de aterrissagem necessários para pousar na superfície acidentada do satélite.
Os mapas de Titã existentes não são suficientemente detalhados, mas o helicóptero voará sobre um possível local de aterrissagem e seguirá voando se não for seguro descer. “O Dragonfly fará seus próprios mapas de Titã enquanto voa”, afirma Trainer. “Essa abordagem evasiva é a opção menos perigosa.”
Já Marte apresenta vantagens sobre Titã em um aspecto. “O conjunto de satélites em volta de Marte que está lá há décadas pode fazer a verificação para o Ingenuity e funcionar como repetidor”, segundo Turtle. “O Dragonfly precisa comunicar-se diretamente com a Terra e com os próprios batedores locais.”
Leva menos de um dia para que os dados viajem de Marte para a Terra para análise e as ordens para o Ingenuity serem enviadas de volta. Em Titã, esse tempo será muito maior.
‘Tremendo desafio’
A próxima expedição aérea pode ser para o planeta irmão da Terra, Vênus. A atmosfera do planeta é 90 vezes mais densa que a da Terra. Sua temperatura é de cerca de 475 °C e a pressão é de 93 bar, equivalente a 1,6 mil metros de profundidade nos oceanos terrestres.
“A atmosfera de Vênus é horrível, mas também é ótima”, afirma Dobrea. “Existe uma enorme cobertura de nuvens com 20 km de espessura que começa a 50 km acima da superfície e vai até 70 km – ela é mais densa que a atmosfera da Terra e é mais fácil voar através dela. Deve ser possível fazer um avião movido a energia solar voar quase indefinidamente nessa altitude com a tecnologia existente.”
O seu segundo conceito de aeronave voará mais perto da superfície. É um “tremendo desafio”, segundo ele, devido ao calor extremo, à falta de luz para energia solar e à alta pressão.
Essa aeronave usa um motor do tipo Stirling para converter o calor extremo perto da superfície em energia para alimentar a aeronave em altitudes maiores e mais frias. Seria um dentre poucos aviões já alimentados por esse motor.
Mas poderá haver outra opção: balões. Foi um balão que realizou o primeiro voo da humanidade em outro planeta. Em junho de 1985, a missão soviético-europeia Vega lançou dois enormes balões esféricos na atmosfera de Vênus. Seus instrumentos foram pendurados em uma gôndola embaixo deles.
“Nós sabíamos que os dois balões haviam sido lançados, mas não se eles haviam sobrevivido”, segundo Robert Preston, líder do projeto norte-americano de rastreamento dos balões. “Tudo o que víamos na tela do osciloscópio era ruído e nada além disso. Até que chegou um sinal fraco.”
“Eu me lembro de sair da sala de controle e olhar para Vênus brilhando no céu, no início da manhã, e pensar: ‘eu estou lá'”, ele conta.
Os balões Vega flutuaram a uma altitude de cerca de 54 km para coletar 46 horas de dados atmosféricos. “Quando analisamos o sucesso dos balões Vega, a resposta correta é que eles foram ‘extremamente’ bem sucedidos”, afirma Jay Gallentine, historiador espacial e autor do livro Ambassadors from Earth: Pioneering Explorations with Unmanned Spacecraft (“Embaixadores da Terra: explorações pioneiras com espaçonaves não tripuladas”, em tradução livre).
“Sei que teremos aeronaves novamente em Marte no futuro”, afirma Tzanetos, “e, com o Ingenuity, estamos acrescentando uma nova ferramenta. Tudo o que aprendemos ajudará outras gerações a explorar não apenas Marte, mas também planetas em outros sistemas solares.”
Mas esse pode ser um desafio ainda maior, segundo adverte o cientista da Nasa Jonathan Sauder, do Grupo de Infusão Tecnológica JPL. Para ele, “se você começar a examinar os planetas fora do nosso sistema solar, tudo começa a ficar realmente alucinante. Existem planetas feitos de gelo ou que têm metais na atmosfera. Existem alguns para os quais não poderíamos enviar nada que conhecemos hoje sem que fosse totalmente destruído, mas existem outros planetas mais parecidos com a Terra.”
Sejam quais forem os diferentes ambientes, a física será a mesma, independentemente de qual seja o sistema solar explorado pela humanidade terrestre. “As lições que aprendemos com a operação de aeronaves autônomas em outros planetas do nosso sistema solar são os blocos de construção de como a humanidade voará no futuro”, afirma Tzanetos.
Sauder está projetando um veículo de superfície que possa sobreviver em Vênus. Os mecanismos criados para o que ele chamou inicialmente de Sonda de Superfície Automática para Ambientes Extremos (Aree, na sigla em inglês) poderão um dia ser encontrados em veículos de superfície explorando Mercúrio e em sondas flutuando profundamente nos planetas gigantes gasosos, além de máquinas explorando o interior da própria Terra.
“Com relação à construção de um veículo de superfície para Vênus, o ambiente extremo significa que muitos dos componentes tradicionais que colocamos nas espaçonaves não funcionarão”, afirma ele. A pressão força o ácido da atmosfera para os componentes, o que significa que eles precisam ser feitos de aço inoxidável ou titânio. A alta temperatura funde os circuitos eletrônicos.
Qual a solução de Sauder? “Vamos fazer um robô totalmente mecânico, um autômato, uma sonda retrofuturista.” O projeto inicial tinha até pernas em vez de rodas, inspiradas nas enormes esculturas mecânicas movidas a energia eólica, conhecidas como strandbeests, do artista holandês Theo Jansen.
Para detectar e desviar de obstáculos, o veículo de superfície usa um sistema de rolos e para-choques que, como um brinquedo de criança, fazem o veículo parar quando atinge um obstáculo e mover-se novamente para frente em direção levemente diferente. “Poderá não ser o mais eficiente, mas é robusto, confiável e funcionará naquele ambiente”, afirma Sauder.
Mas resultou ser muito difícil eliminar todos os circuitos eletrônicos. Por isso, circuitos eletrônicos básicos que podem funcionar em altas temperaturas são utilizados para medir a temperatura e a composição química, transmitindo os dados para o satélite. Isso fez com que a sonda precisasse ter seu nome substituído para Sonda Automática Híbrida-Vênus (Har-V, na sigla em inglês).
E existe a questão da energia para fazê-la funcionar. Solar não é possível porque Vênus tem nuvens espessas e noites que duram 60 dias. Por isso, os engenheiros da Nasa voltaram-se para a energia eólica para alimentar diretamente os sistemas mecânicos da sonda. A câmera e os sensores químicos são ainda mais complicados e até agora não foram desenvolvidos.
A possibilidade que as rodas do Har-V pousem em Vênus pode ser reduzida, mas existe a possibilidade de que o seu projeto venha a influenciar a sonda que irá até lá.
“Estou confiante que, um dia, teremos sondas sobre a superfície de Vênus e que as lições aprendidas com a arquitetura do Har-V influenciarão esses projetos”, conclui Sauder.