É sabido que Fernando Pessoa escreveu muito e a maior parte de sua obra apareceu aos olhos do mundo depois de sua morte precoce em 1935, aos 47 anos. Não deixa de ser impressionante constatar que agora, 83 anos depois, materiais inéditos sejam descobertos e publicados, bem como novas edições organizadas. É o que ocorre agora no mercado editorial brasileiro com quatro lançamentos.
Apenas uma entre as suas mil facetas, o ficcionista Fernando Pessoa aparece agora em dois livros com alguns textos inéditos: Contos Completos, Fábulas & Crônicas Decorativas, da Editora Carambaia, e O Banqueiro Anarquista e Outros Contos Escolhidos, da Nova Fronteira.
O primeiro é fruto da seleção e organização do renomado poeta e tradutor angolano Zetho Cunha Gonçalves. O livro traz 14 textos em prosa de Fernando Pessoa: três deles inéditos em livro, três traduções de contos do escritor americano O. Henry, e uma peça de teatro. Uma narrativa inédita apresentada no volume é a Crônica Decorativa II, escrita em 1914, em que um narrador anticientificista fica espantado ao descobrir que a Pérsia, de fato, existe. “Eu julgava que a Pérsia era apenas o nome especial que se dava à beleza de certos tapetes”, reflete o narrador, num tipo de humor altamente irônico que perpassa a produção ficcional do escritor.
“De certa forma”, escreve Cunha Gonçalves, “toda a obra de Fernando Pessoa – ortônima ou heterônima, em prosa ou verso – se interliga como uma teia de aranha gigantesca, cujos fios e cordéis compete ao leitor desfiar, tecer, distender, encordoar, e sobre eles caminhar como se fosse um funâmbulo em permanente sobressalto e descoberta”.
Um texto que aparece nos dois volumes é O Banqueiro Anarquista, “a peça principal do corpus sempre variável e variado dos contos pessoanos”, segundo o organizador do livro da Nova Fronteira, Alexei Bueno.
O texto é uma noveleta em que Pessoa expõe um narrador aparentemente paradoxal, afinal, banqueiro e anarquista. “Quanto à prática, sou tão anarquista como quanto às teorias. E quanto à prática sou mais, sou muito mais anarquista que esses tipos que você citou. Toda a minha vida o mostra”, diz o personagem. O conto segue então por várias páginas em que ele explica sua versão da teoria anarquista, em que individualiza a “revolução” por considerar que as organizações políticas de grupo são um entrave no caminho da revolução.
O personagem seria “quase um alter ego do criador do ‘drama em gente’, quiçá um semi-heterônimo”, segundo Cunha Gonçalves. No prefácio de Contos Completos…, ele recupera um texto que Pessoa publicou em 1935, declarando-se “anticomunista e antissocialista”, mas também “liberal dentro do conservantismo, e absolutamente antirreacionário”.
A faceta política de Fernando Pessoa – eclipsada por sua obra poética, mas parte importante de sua vida – aparece escancarada em Sobre o Fascismo, a Ditadura Portuguesa e Salazar, volume que a Tinta-da-China colocou nas livrarias brasileiras recentemente. O livro foi organizado pelo historiador português José Barreto, especialista dos escritos políticos do poeta, e reúne “todos os escritos de Fernando Pessoa que foi possível recensear, entre os ainda numerosos inéditos do espólio do escritor e a obra publicada em vida ou postumamente, versando sobre três temas principais”.
A edição de Sobre o Fascismo é primorosa. Além de uma apresentação profunda dos posicionamentos políticos do autor assinada por José Barreto, o livro traz fac-símiles de manuscritos, páginas de jornais, fotos e um arsenal de referências.
No livro é possível localizar um conjunto de notas, datilografadas por Pessoa em 1926 e nunca publicados, em que o autor faz uma reflexão: “Como, pois, se reforma uma sociedade? É simples: por um movimento não colectivo, isto é, por um impulso puramente individual”. Isso quatro anos depois da publicação de O Banqueiro Anarquista.
Para o professor de literatura portuguesa da USP Caio Gagliardi, “ainda hoje há uma miopia generalizada a respeito de seu posicionamento político (de Pessoa)”.
“É importante ressaltar que a complexidade inerente a Pessoa passa despercebida a esquemas muito rígidos de leitura, que tendem a rotular o pensamento político como sendo ‘de esquerda’ ou ‘de direita’”, explica o professor, nome à frente do grupo Estudos Pessoanos, da FFLCH-USP, que reúne pesquisadores de graduação e pós-graduação. Agora em janeiro, o livro Fernando Pessoa e Cia. Não-Heterônima, com resultados das pesquisas e artigos inéditos em livro, sai pela Editora Mundaréu.
O fato é que Pessoa nutria uma desilusão profunda com a Primeira República Portuguesa (1910-1926) e chegou a encarar a ditadura militar que se seguiu como sendo “não mais do que um estado de transição para o estado constitucional de direito”, explica Gagliardi. “O rico material reunido por Barreto deixa claro que se houve, durante certo período, alguma condescendência de Pessoa com relação ao regime, a partir de 1932 o autor passa a criticar Salazar, e em 1935 já é considerado adversário público do Estado Novo. Um crítico convicto da censura, do uso da força e do imperialismo territorial.”
Para ele, deve-se tomar as posições políticas de Pessoa no plural. “ Enquanto cidadão comum, Pessoa foi eclipsado por sua obra. É nesse sentido que, num ensaio a respeito de Pessoa, Octavio Paz afirma que ‘Os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra.’”
Outra publicação recente da Tinta-da-China Brasil, que traz ao País a mesma coleção do autor publicada em Portugal, foi a Obra Completa de Alberto Caeiro, um dos heterônimos mais conhecidos do poeta. “Alberto Caeiro está no centro da ficção pessoana”, explicam os organizadores da edição, Jerónimo Pizarro (coordenador da coleção da editora) e Patricio Ferrari.