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Um amor de chapéu

O belo palacete que resistiu ao tempo até virar um amontoado de lembranças

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

No quarteirão final da rua, antes de se chegar às faldas do morro por sobre o qual se ergue um grande monólito granítico, famoso na cidade, estava ele: o palacete.

Situado bem ao centro de um grande terreno, com pequeno aclive no final, muito elegante, delicado, glória de seu tempo. Nos últimos anos, estava meio abandonado e relegado a uma memória que ia se apagar por completo. Inevitavelmente. Pelo menos foi isso que intuí quando soube, em andanças pelos bares do meu bairro, que sua proprietária, única herdeira, filha solteira e sozinha, havia procurado algumas imobiliárias para avaliá-lo.

As laterais do terreno, repletas de árvores, haviam dado espaço suficiente para que estas crescessem altas e bem grossas. As copas acabaram por tocar o telhado. A certas horas do dia, o penhasco projetava sua sombra. Fez-me, várias vezes, lembrar a descrição do “Ateneu” de Raul Pompéia, guardadas as devidas proporções por causa do tamanho, situação e estilo.

O alinhamento com a rua era guarnecido de muro de pedra e grades em forma de lança retorcida na ponta. No centro do gradil, um caprichoso portão, quase em forma do contorno de asas de uma borboleta. À esquerda da entrada, a alguns passos desse portão, num plano ligeiramente superior e também cercado de um gradil decorativo, um torreão utilizável, pois no topo existia uma varanda circundante, guarnecido de janelas e encimado por uma estrutura metálica revestida, em seus painéis, por pequenas placas de ardósia. Nunca imaginei o que haveria ali dentro, nem o vira habitado. Quando garoto, pensava que podia ser um posto de observação. Mais tarde, passei a apostar na mera função estética. A passagem de acesso ao torreão tinha o piso acabado com antigos ladrilhos hidráulicos, daqueles que foram moda há muitos anos e ainda hoje são artesanalmente fabricados. O padrão dos ladrilhos era totalmente art nouveau, e formavam um lindo rendilhado, cheio de detalhes.

Atravessando um jardim, que em seus dias de esplendor devia ser muito mais bonito, chegava-se à escada, escalonada em semicírculos, de acesso à varanda do primeiro piso, estendido por toda a fachada da casa, guarnecida por uma balaustrada de cimento com desenhos delicados que receberam apliques ao estilo do restante da obra. Bem no centro da balaustrada e acima, via-se um mascarão feminino, bem parecido com esses das fontes Wallace, do Jardim Botânico, com um olhar sereno no infinito, mas de muito maior tamanho.

O piso dessa extensa varanda era revestido de ladrilho hidráulico, com o mesmo delicado desenho do patamar em volta do torreão.

Na fachada, vários adornos de estilo eclético. Causavam repulsa a certos observadores. Estilo francês, alienígena. O genuinamente brasileiro é o colonial, com suas janelinhas tortas, parecendo uma estrutura desconjuntada, ou o moderno, cimento armado apequenando o homem. O percurso entre esses dois estilos, no qual se encontrava a casa na minha rua, devia ser desprezado. Preferencialmente derrubado. Mas muitos há que são apaixonados pela estética incomum daqueles anos – grupo no qual me incluo.

Todas as janelas que miram a rua estão fechadas. Noto que algumas, nas laterais, estão com as bandeiras para o lado de fora. Há bem pouco sinal de vida na casa. À esquerda, no fundo do terreno, uma pequena garagem. Não sei se foi ali conservado algum automóvel antigo, há muito não utilizado. Aguço mais ainda minha imaginação. Em dois pontos diferentes do jardim, bancos de cimento revestidos de caquinhos de louça colorida.

Minha vida de artista irresoluto não permitiria qualquer movimento em direção à compra. Imaginei que o preço orbitaria na casa de alguns milhões, como vinha ocorrendo toda vez em que os velhos casarões do bairro davam lugar a incompreensíveis amontoados de metal, vidro e pedra, umas naturais, outras artificiais para incrementar a fachada. Ainda pensei em me juntar com uma leva de outros artistas. Mas esses, como eu, não tinham dinheiro. Embora um ou outro pudesse nutrir o desejo pela conservação da casa e sua posterior transformação num ateliê-habitação, como já havíamos cogitado entre uma e outra cerveja. Sem a dureza de ter de brigar diuturnamente na vida para cumprir com a obrigação do aluguel, tendo, ainda, um lugar só nosso para desenvolver as ideias, ou livrando-nos das casas paternas onde as inspirações eram interrompidas pelos mais comezinhos problemas – o que era o meu caso.

Quantas vezes estava a imaginar meus roteiros, dando forma a eles na animação em computador, ou em quadrinhos, e minha mãe abria, sem bater, a porta do meu quarto para perguntar se a calça atrás da porta do banheiro era para lavar. Se eu sabia o que tinha acontecido com a filha da Graça, minha prima. Na avaliação de minha mãe, a moça não estava dando para boa coisa. Estava eu compondo uma música, quase achando a linha melódica essencial, inédita, um verdadeiro divisor de águas na MPB e meu pai, chegado da padaria ou da banca de jornais, resolvia dividir comigo os assuntos conversados com o Sr. Antônio ou com o Quelé, porteiro do edifício da tia Lurdes. Sr. Antônio e Quelé falavam irremediavelmente de corrupção na política, enquanto se gabavam de suas proezas de fiscal aposentado que ganhou toda propina que pôde na vida, e de zeloso funcionário do condomínio que vendia o material de limpeza achado em excesso na despensa da garagem…

Eu, artista, precisava urgentemente de um lugar só para mim. Mas o dinheiro não dava. Ia tendo de submeter minha arte à regulação parental, não podendo ser livre para cantar a qualquer hora do dia ou da noite, pois atrapalharia o sono dos velhos. Sempre tive a impressão de que, se pudesse voar solto, qual passarinho, os acessos de inspiração e realização viriam muito mais constantes, regulares, e enfim poderia viver de minha arte. Na qual, aliás, meus pais nunca acreditaram.

Vida que segue…

Desde que nasci, morei no mesmo local. Fui geração de apartamento. Prédio velho, construído no final dos anos 60, certamente no lugar de um casarão ou sobrado comercial de antigas eras. E, quando tomei consciência de meu bairro, de minha rua, de minha vizinhança, sempre gastei as tardes andando por ali. Conhecia muitos vizinhos, meus contemporâneos na escola, nas idas à praia, nas festinhas da adolescência. Conhecia também os pais de meus contemporâneos, avós, avôs, e até eventuais primos que ali passavam dias nas férias. Fiz relações de amizade, que mantinha até hoje, com muitos deles. Mas uma vizinha era total mistério. Livro trancado à minha compreensão. Tratava-se da herdeira da fabulosa casa, da qual só conseguira apurar o nome: dona Olga. Desconheci por muito tempo o sobrenome. Depois, colhendo informações aqui e ali, pesquisando na Hemeroteca Digital Brasileira, em alguns jornais antigos, notícias sobre meu bairro e minha rua, fui achando traços de informação e soube mais do que meus pais puderam informar. Meus avós, daquela geração antiga, talvez pudessem elucidar mais, pois sempre foram do bairro também. Mas, enquanto foram vivos, eu não tivera o interesse de perguntar.

A dona da casa era Olga Proença de Barros, filha de diplomata.

A família, descendente de portugueses que, desde a chegada, se estabeleceram naquele bairro, teve rico comércio, e pelo menos duas gerações cresceram ali. Dona Olga e a irmã, Lídia, eram a terceira geração. De Lídia, nenhum traço mais. Informei-me com amigos pelos bares. Devia ter morrido há muito tempo, talvez ainda solteira…

Na adolescência, lembro de ter visto, ainda que de longe, dona Olga. Sempre apressada, nunca acessível, vi-a descer do ônibus um par de vezes, bem perto da casa magnífica, lá entrando rapidamente.

A casa, a julgar por seu estilo, fora construída entre os idos de 1910, segundo consegui apurar, em terreno que pertenceu ao avô de dona Olga. Uns 20 anos mais tarde, entraram a morar nela os membros daquela pequena família quase desaparecida: Olga, talvez bebê de colo ainda, sua irmã Lídia, um pouco mais velha, e os pais, Orlando de Barros e Maria da Piedade.

Tudo isso fui reconstituindo em conversas pelo bairro e em investigações na imprensa da época. “O Imparcial”, “A Noite”, “Careta”… uma verdadeira incursão por notícias de tempos idos. O ineditismo do passado em pleno presente.

Vi o anúncio de falecimento de dona Maria da Piedade, quando mal completara 40 anos de idade. O cortejo fúnebre saíra da mesma casa, em direção ao cemitério de São João Batista. Missa de sétimo dia na Candelária.

Lídia era a ponta solta nesse enredo. Não encontrava referências a respeito. Um dia, acessando para outra finalidade os arquivos de uma revista digitalizada, topei de forma acidental com a notícia: casa-se a filha do ministro Orlando de Barros com “promissor funcionário do Ministério da Justiça”. Lua-de-mel em Paris, viajando em navio a vapor. Fiquei radiante, afinal! Mais elementos no misterioso drama. Então Lídia chegara à vida adulta. Talvez tenham ficado na casa apenas dona Olga e seu pai.

No final dos anos 60, justamente o início da demolição impiedosa de várias casas antigas da vizinhança, encontro o anúncio de missa de sétimo dia de Orlando de Barros. Era julho de 1968, e consigo imaginar dona Olga sozinha naquela casa, a partir dali e para sempre. Situação que talvez perdurasse até hoje. Simbolicamente, vai-se o imperador do palacete eclético, ‘art nouveau’, moderno para sua época, cheio de comodidades, e com ele desaparecem também outras casas, sólidas construções, umas mais novas, outras mais antigas, todas testemunhas de um tempo que é sepultado e desaparece em poeira.

Pensei, pensei muito, e resolvi traçar um plano: aparecer lá, vestido de funcionário da imobiliária. Digo que vou avaliar a casa a pedido de sua dona. Haveria tempo? Mas seria a única maneira de entrar nela, de sentir sua atmosfera, tocar sua textura, entender que cheiro ela tem. Cresceu em mim, mais que curiosidade, verdadeiro fascínio por aquela casa remota e agora entristecida, desde que a vi pela primeira vez, ou desde que me dei conta disso.

As pessoas me interessavam menos nessa história que a própria casa. Sempre fui fascinado pela obra. Agradou-me o estilo. Complexo, com alguns exageros, mas, sem sombra de dúvida, lindo. Era uma obsessão estar ali, conhecê-la por dentro, entender sua disposição interna, percorrer seus cômodos. Corresponderiam à minha imaginação?

No dia seguinte à ideia de me passar por corretor, fui para a rua e parei em frente da casa, como já havia feito tantas vezes. Fiquei observando do outro lado da rua, vendo o plano completo. Poderia rodar um filme ali. Um filme sobre a história da velha sozinha numa casa entristecida. A solitária dona Olga. A casa malcuidada, dentro e fora, pela falta de recursos financeiros ou mesmo de vontade. Porque, em algumas circunstâncias, as grandes casas antigas herdadas não passam de um estorvo às gerações seguintes, que não conseguem mantê-las. Fechada todo o tempo, sua proprietária vive quase num claustro, inacessível, sem contato com vizinhos, sem parentes que lhe queiram.

Pobre dona Olga, sentada numa cadeira de balanço de palhinha rota, balançando suavemente, enquanto vê um antigo álbum de fotos, a luz entrando por uma única janela lateral aberta desce em cascata sobre sua silhueta magra e encurvada. Ouve-se o barulho do vento, um riso de criança. Ela se levanta, deposita o álbum sobre uma velha marquesa de mogno, vai até a janela e contempla o jardim. Lá vê sua própria imagem, quando menina, brincando e correndo. Rindo e sendo muito feliz. ‘Close up’ no rosto enrugado. Uma furtiva lágrima desce de seu olho direito. A câmera vai se aproximando. A imagem se tornando sépia. ‘Fade out’.

Tomei a decisão de tocar a campainha. Quem sabe ela não aceita meu interesse na história da casa. Ainda que interpretando um corretor de imóveis, puxo um assunto. Nutro minha incansável curiosidade por coisas desoladas e antigas, e dou oportunidade da velhinha vencer um pouco essa nuvem de solidão amarga que lhe pesa sempre.

Penso na vida vazia e incompleta que teve, abandonada naquela casa. Sem seus pais, sem sua irmã com quem crescera junto e, por muitas vezes, deve ter sido sua companheira de brincadeiras naqueles jardins antigos. Se antes tinha à sua disposição um time de criadas, agora precisava cuidar de toda a casa sozinha. Tarefa cada vez mais pesada com a idade, e por isso vinha o desleixo, vinha a apatia, a decrepitude.

Tomei coragem de pôr em prática meu plano. Voltei à minha casa, preparei-me, vesti-me com a única camisa social que tinha, uma calça preta, sapatos condizentes. Peguei a gravata vermelha de meu pai. Ao espelho, era o próprio corretor de imobiliária. Funcionário exemplar, com pasta cheia de papéis timbrados. Timbres que eu mesmo fizera, imprimindo em folhas cheias de escritos achados na internet o logotipo de uma grande imobiliária, certamente consultada para avaliar e intermediar o negócio. Talvez um valor na ponta da língua, dito cruamente. Bem abaixo do esperado por dona Olga. Assim ela desistiria da venda, morreria ao cabo de alguns anos, e deixaria a casa em paz, como um monumento, um marco em homenagem à minha incessante curiosidade de garoto e homem.

Achei-me ridículo e abandonei a personagem.

Mil outros pensamentos foram passando por mim quando, umas duas tardes depois daquela última observação da casa e seu entorno, decidi-me novamente a partir em direção à casa para, após idêntica preparação, atuar como corretor.

Chegando perto, percebi que o inevitável cartaz de VENDE-SE ainda não havia sido afixado em nenhum ponto das extensas grades do jardim. Supus que a avaliação e o andamento do negócio ainda não haviam saído do zero. E tinha razão.

Toquei a campainha. Não percebi nenhum movimento. Insisti. Bati palmas e esperei. Alguns minutos se passaram. Eu tinha medo que alguém passasse pela rua, me reconhecesse e estragasse meu plano. Um pouco depois, aparece uma cabeça conhecida numa janelinha da varanda. Dona Olga!

Ela abriu a porta, dirigiu-se em direção ao portão e me perguntou o que desejava.

“Senhora, vim avaliar a casa, sou da corretora.”

“Estranho… Esperava-o para o período da tarde. São onze da manhã! Mas entre, vamos ver o imóvel, senhor?…”

“Rogério.”

Dei o nome de Rogério, inventado ali na hora, e ela me apertou a mão.

“Este jardim é muito bonito, dona Olga. Talvez um pouco trabalhoso de manter?” perguntei, já pretendendo chegar às brincadeiras de infância que ela e a irmã faziam no local, sob os olhos da falecida mãe ou de uma empregada.

“Sem dúvida. Já foi bem mais bonito. Hoje não cuido tanto. Por isso ele está assim, um pouco deteriorado. Mas é o meu lugar preferido da casa. Aliás, a torre também.”

“Ah, acho interessante que a senhora haja mencionado. Trata-se de uma torre mesmo. O que há nela?”

“Meu pai a construiu apenas para tomar o café da manhã e ler seus jornais, entregar-se a alguns estudos. Ele foi do Ministério das Relações Exteriores. Era muito estudioso, consultor pessoal de vários ministros em assuntos delicados. Ali redigia cartas, dava pareceres, informava processos que trazia do Ministério.”

“E a senhora não vai mais lá?” – perguntei curioso.

“Infelizmente não confio mais na escada em caracol que leva ao pequeno escritório lá em cima. Por causa da falta de cuidados por anos a fio, e também pela falta de equilíbrio. Mina saúde já não é a mesma. Estou com 86 anos.”

Oitenta e seis anos tinha dona Olga, mas na vivacidade de seus olhos verdes aparentava menos. Animei-me, pois percebi que ela não seria refratária a tantas curiosidades que eu tinha. Sabendo levar o assunto, descobriria várias coisas. Acessaria os recônditos do palacete que sempre me intrigara.

Fingindo nada saber, perguntei sobre a origem da casa, sua construção. Dona Olga completou o que eu já conseguira descobrir nas incursões pela Hemeroteca e acrescentou alguns detalhes interessantes: que havia sido contratado um arquiteto francês para elaborar a planta. Que a companhia construtora do imóvel acabou modificando, a pedido da família, a parte interna, para dotá-la de um cômodo amplo na lateral direita para servir de biblioteca, não prevista no projeto original. Que os banheiros da casa eram muito modernos para a época, dotados de instalações a gás que proviam de água quente todas as torneiras, mesmo na cozinha. E que, passados tantos anos, o sistema ainda funcionava perfeitamente. A escada interna, em mármore de carrara, era uma obra de arte. E foi com ânimo que ela me chamou para ir vê-la.

Detive-me um segundo antes de subir a escada em semicírculo que levava à varanda. Dali a poucos passos penetraria nos umbrais do mistério. Mistério que alimentava havia tantos anos, de conhecer por dentro aquela inacessível mansão. Dona Olga não adivinhou minha emoção, mas me fez entrar.

“Este piso, Sr. Rogério, era originalmente de tábuas corridas. Mas tivemos de substituir com os anos. Eu não achava nada prático manter. Com o aval de meu pai, mandei pôr o ‘parquet’.”

O mosaico formado pelas pecinhas de madeira intercaladas era espetacular. Senti uma fisgada em meu coração ao imaginar tudo aquilo virando pó para a construção de mais um monstrengo de vidro e pedra artificial na fachada, com varandas do indefectível Blindex onde mal cabem duas pessoas e a máquina do ar-condicionado.

“Deste corredor partem os cômodos aqui de baixo, Sr. Rogério. Ao fundo, a cozinha, que pouco modernizei ao longo desses anos. À direita, a biblioteca. Após ela, uma sala íntima de visitas. É onde hoje eu assisto televisão. Aqui neste lado, o meu cômodo preferido, por causa da vista do jardim de trás da casa…” Dona Olga fez uma pausa e pareceu olhar para o passado.

“Mas isso tudo pouco importa, não é mesmo? O interesse de hoje não está na casa, em seus cômodos, na solidez da construção. Observe isso: paredes dobradas! Vão comprar e demolir tudo isso aqui, é o que eu acho.”
“Quem sabe, dona Olga – respondi eu – algum entusiasta de imóveis antigos não compra e preserva este aqui? Seria uma pena derrubá-lo para pôr no lugar algo de nenhum valor arquitetônico.”

“Mas de muito maior valor econômico, meu jovem” – respondeu-me ironicamente dona Olga, fazendo com os dedos o sinal típico de contar dinheiro.

Ela me mostrou cada cômodo do andar de baixo. Eu perguntei timidamente sobre alguns itens: quadros, retratos, peças decorativas, diplomas e certificados em molduras nas paredes. E para tudo havia uma história e um porquê. Eram homenagens a seu pai, algumas até de organizações e governos estrangeiros, antepassados portugueses, parentes do Brasil, itens trazidos de vários países do mundo, alguns ainda da época de sua mãe, falecida cedo, no interior daquela casa, por conta de uma doença grave e repentina. Não confessei que sabia parcialmente desse drama, mas foi ali que descobri a razão da morte prematura de dona Maria da Piedade. Havia belas pinturas a óleo nas paredes. Retratos e paisagens. Explicou dona Olga que havia feito todas. É pintora. Uma artista talentosa, sem dúvida. Dava aulas. Surpreendi-me com essa informação, nunca desconfiara.

A excursão pelo segundo andar da casa foi tão surpreendente para mim quanto os mistérios elucidados no primeiro andar. Conheci os quartos, mais ou menos conservados como se desde os idos de 1930 nenhuma intervenção mais drástica tivesse ocorrido em sua disposição. Num deles, o de dona Olga, chamou-me a atenção um retrato em moldura de prata sobre a cômoda. Perguntei quem eram, já supondo a identidade das personagens retratadas. Dona Olga com sua irmã durante um cruzeiro. Foram a Portugal, Itália e França, pouco antes desta se casar. Dona Olga usava, na foto, um chapéu. Explicou-me detalhes sobre ele. Era o seu chapéu preferido. “Um amor de chapéu” nas palavras dela. Tinha apliques em madrepérola e um penacho vermelho, ela disse. “Não usaria nada assim hoje em dia, mas era a moda então”.

Vi os modernos banheiros, construídos com requinte, minúsculas pastilhas de cerâmica no chão formando harmônicos desenhos de flores, folhas e sereias. As torneiras com contornos que imitavam vegetais, tudo preservado de forma impressionante, dada a qualidade das coisas de antigamente.

Ao final da análise do lado de dentro da casa, ela ainda me levou pelo quintal, que apenas parcialmente se via da rua. Notei o tamanho do terreno, e concluí até o fato de a casa parecer bem mais conservada por dentro do que por fora. Só me decepcionei em saber que, dentro do pequeno galpão-garagem, não havia carro nenhum esquecido. Dona Olga nunca dirigira. Apenas seu pai, que trocava de automóvel com certa frequência, tendo sido o último deles vendido por ocasião do seu inventário.

Em tudo fiquei encantado. Estranhei, no entanto, o contraste entre a vivacidade e o carinho com que dona Olga me contava as histórias, enquanto me permitia penetrar em sua fortaleza particular, e um certo sentimento, que nela percebi, de que aquilo se tratava de um ciclo encerrado: era hora de dar passagem ao progresso, ainda que violento, a desprezar a história de vidas e cidades. O progresso passando por cima de tudo aquilo, inclemente.

Dona Olga convidou-me a sentar numa saleta que servia de escritório. Pesados móveis antigos guarneciam a peça. As almofadas das cadeiras eram revestidas de um sóbrio verde. Íamos falar de negócios. Convenci-a em minha interpretação de corretor de imóveis. Dotes de ator eu sabia ter.

“E então, Sr. Rogério, qual base de preço devo pedir pelo imóvel? Está tudo acertado quanto ao registro. Questões documentais cristalinas.”

Ante aquele golpe fatal da única pessoa que podia evitar a iminente violência contra a inocente casa, expus corajosa e francamente minha curiosidade:

“Dona Olga, perdoe-me. Não gostaria de ser grosseiro ou indiscreto, mas percebo sua vida solitária aqui dentro, os anos cultivando memórias antigas, a dificuldade em manter até aqui tudo arrumado. O isolamento, a falta de parentes. Talvez mesmo o fato de a senhora não haver se casado ou tido filhos apenas para se dedicar ao seu pai, depois à casa. E agora se desfazer disso tudo? Dar adeus às memórias, apagá-las? Permitir a demolição de tantas histórias inscritas nessas paredes a nossa volta?”

Os olhos de dona Olga foram um misto de curiosidade e espanto ante minhas palavras. Na hora, percebi o excesso de confiança de minha parte. Até uma indelicadeza. Nada tinha com isso. Sequer era o corretor. Mas todos adivinhariam o destino da casa após a venda. Pó. Escombros. Era a última cartada para salvá-la desse cruel destino.

Enquanto falava a ela tudo o que pensava, mal percebi a presença discreta de uma pessoa, senhora de idade, que entrou e saiu do cômodo onde nos assentamos, e voltou ainda trazendo uma bandeja com um bule e três xícaras de café.

Então dona Olga não estava tão sozinha assim! Tinha uma governanta? Empregada?

“Gostaria de apresentar-lhe minha irmã, Sr. Rogério. Esta é Lídia. Depois da morte de nosso pai, esta casa ficou para nós duas. Ela não morou mais aqui após se casar. Fiquei eu apenas. Nunca me casei porque preferi dedicar-me à profissão. Sou professora aposentada de Artes. Lecionei na universidade por muitos anos. Agora minha irmã é viúva, os filhos crescidos. Ela tem netos, e eu, sobrinhos-netos. Muito queridos e próximos. Estamos sempre juntos. Mas resolvemos, minha irmã e eu, aproveitar a saúde que nos resta, os anos que ainda temos, viajando por aí. Nada melhor do que torrar essa casa que dá tanto trabalho, e ir morar com minha irmã. Ela sempre insistiu nisso, e agora como ela está viúva… As memórias ficarão para sempre, mas não dependem dessas paredes. Por isso, esteja tranquilo, Sr. Rogério. Isso não é vingança de uma velha esquecida e solitária não…” – e neste ponto dona Olga deu uma sonora gargalhada.

Ao fim da gargalhada, soa a campainha. Havíamos ficado absortos nas reminiscências, na visita à casa.

Era o corretor da imobiliária, desta vez o de verdade, que vinha realmente avaliar a casa. Orientar dona Olga em seu negócio. Fiquei numa verdadeira saia-justa. Sem saber o que fazer para sair dali. Eram poucos minutos até ser descoberto. O tempo de dona Lídia descer as escadas, se dirigir ao portão e sinalizar a dona Olga minha impostura.

Minha sorte foi que as duas juntas pediram licença e foram ver quem era no portão. Na volta, não me encontraram. Saí pelos fundos. Quando percebi que entravam pela sala, já mencionando não entenderem porque aquele corretor, agora o de verdade, também estava lá, eu escapei pelo quintal e fui me esconder atrás do torreão, analisando a possibilidade de pular o gradil de ferro e ganhar a rua. Além da óbvia falsidade, que podia me trazer problemas, escapava do constrangimento de me explicar.

Não foi necessário. O portão ficara destrancado e elas, entretidas pelo corretor de verdade, apenas achavam estranho e ralhavam com ele. Desorganização na imobiliária!

Tive a ideia de forçar a porta do torreão, enfrentar a escada enfermiça e penetrar no último local desconhecido da casa – o escritório, o gabinete de estudos e leituras de seu antigo dono.

A porta cedeu facilmente à força de meu ombro. Enquanto isso, dona Lídia aparecera na varanda a me procurar. O corretor verdadeiro e dona Olga, quase ao mesmo tempo, apareceram na janela do quarto de cima. Estavam dando busca de mim pela casa. Fiquei com receio de chamarem a polícia. Não o fizeram. Mas até hoje não entenderam o que ocorreu.

A velha casa foi vendida poucos meses depois dessa minha visita. Pelo menos satisfiz, para sempre, minha curiosidade.

Contei que a porta do torreão cedeu facilmente ao meu ombro. Estava, realmente, muito velha e rota. Bem como a escada espiralada em madeira que havia lá dentro. A iluminação natural, que entrava por tijolos de vidro dispostos em intervalos regulares nas paredes, não ajudava muito, pois esses tijolos estavam bastante empoeirados.

Tive medo, mas subi devagar a escada que rangia de velha sob meus pés. Cheguei a uma pequena saleta, com móveis atulhados, dispostos de qualquer maneira, como coisas inservíveis. Muitas caixas contendo documentos, às quais, abusando de minha estada ali, olhei rapidamente, buscando fotografias e coisas interessantes. Nada achei que me despertasse.

Saí dali rapidamente e não fui notado. Quando cheguei ao portão, o corretor e as donas da casa já não procuravam por mim.

Soube que, antes da venda da casa, as donas ainda apuraram um bom preço com o mobiliário antigo que havia, bem como levaram para a casa de dona Lídia todas as peças de família que resolveram guardar como lembrança. E esse acervo preservado se consistiu, principalmente, de retratos, alguns quadros e documentos.

O resto da construção teve, na hora que fora reservada, seu desigual embate com as picaretas e pás mecânicas.

A primeira peça a cair foi o torreão. Lá dentro, todas as coisas guardadas. Nada havia sido retirado de dentro dele.

Não notei quando lá subi, mas numa caixa empoeirada e jogada de qualquer jeito, estava guardado o chapéu com o qual dona Olga fora fotografada durante o cruzeiro com a irmã, em plena juventude.

Até hoje lembro daquela foto e de suas palavras.

“Um amor de chapéu.”

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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com

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