60 anos depois
‘O Cruzeiro Lá no Alto’ não era um nome muito legal
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emDesconfie de peças que já nascem com o título pronto. Quando o diretor Zé Renato disse ao jovem autor Gianfrancesco Guarnieri que O Cruzeiro Lá no Alto não era um nome muito legal, a trama sobre uma greve por trabalhadores pedia um nome histórico. Há 60 anos estreava, no Teatro de Arena, um dos marcos da dramaturgia nacional chamado Eles Não Usam Black-Tie, que agora ganha temporada no Teatro Aliança Francesa.
Na montagem, o autor descreve a rotina de Tião (Kiko Pissolato), que se recusa a participar de uma greve de operários conduzida por seu pai, Otávio (Adilson Azevedo), um velho sindicalista. A razão do jovem é simples: ele considera a luta utópica demais e não vê solução para os trabalhadores. Além disso, pretende casar com Maria (Paloma Bernardi), de quem espera um filho. Sua fé na futura família se choca com a urgência da luta de seu pai.
A genialidade do autor estava em trazer tipos populares para o centro da conversa, coisa rara na época em que o Teatro Brasileiro de Comédia povoava suas montagens com dramas estrangeiros e figuras bem-vestidas da classe média. O título da peça de Guarnieri então seria uma resposta elegante – e provocadora – ao teatro “burguês” do TBC. “É lindo como o Guarnieri apresenta os personagens longe de estereótipos e até fetiches sociais”, conta o diretor Dan Rosseto. A montagem também vislumbrava o surgimento do Cinema Novo no País, que começava a elaborar suas questões para a desigualdade social no Brasil.
Na época da estreia de Eles Não Usam Black-Tie, o Arena sofria com dificuldades financeiras para se manter. Era a última aposta do grupo que teve no elenco nomes como Eugenio Kusnet, Lélia Abramo, Miriam Mehler, Vianinha e o próprio Guarnieri. É preciso lembrar que 15 anos antes o espetáculo Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, já havia reorganizado a cena, iniciando o chamado Teatro Moderno Brasileiro. “A peça de Nelson provocou rebuliço por colocar no palco o ‘povo’ e nos fazendo enxergar as pessoas que passavam despercebidas pelo cotidiano de grande parte do público.”
Com dez atores em cena, a montagem de Rosseto retrata os desdobramentos da vida humilde de uma família que mora em uma favela. A agitação trazida pela organização da greve serve como palco para o embate entre o individualismo do jovem e o engajamento político de seu pai. Em certo momento, Tião é posto para fora de casa e o diretor compara a atitude à intolerância praticada nos dias de hoje. “Ao mandar o Tião embora por pensar diferente, me aproximo de gays que são expulsos de casa por assumirem e exercerem a sua sexualidade, de artistas natos que decidem viver sua verdade por meio de sua inquietação e de tantos outros que divergem do pensamento coletivo. A família é um excelente objeto de estudo para questões morais.”
A estreia da montagem no Teatro Aliança Francesa também resgata outras histórias de Guarnieri. Em 1973, o autor estreou Um Grito Parado no Ar, espetáculo que despistou a censura ao se valer da metalinguagem para discutir a repressão sofrida por um grupo de teatro. Esse recurso poético marcou grande parte das encenações desse período. “A peça trazia um grupo de artistas que teve sua liberdade de expressão vetada por um cobrador totalmente controlador”, conta ainda Rosseto.