Crônicas periciais
“O Desafio do Zé Prego e a Astúcia do Perito”
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emLá pelas bandas do Taboado, onde até o vento conta segredos e o galo canta duas vezes pra confirmar o dia, vivia um perito criminal de mão cheia e língua afiada. Diziam que ele tinha resposta até pra pergunta que ninguém fez, ou que ainda estavam por existir e que não existia crime no mundo capaz de enganá-lo.
Pois bem, numa dessas noites em que a lua parecia mais curiosa que de costume, o delegado Tenor chamou o perito com urgência:
— Dr. Perito, venha rápido! Conseguimos pegar o Zé Prego! Ele é o principal suspeito de ter metralhado o Sebastião, mas o danado não solta uma palavra! Está ali, sentado, como se fosse o rei da verdade,
afirmando que nunca disparou uma arma na vida e que nem sequer possui uma!
O perito, que tinha paciência maior que fila de repartição pública, ajeitou o chapéu e foi. Lá na delegacia, encontrou o Zé Prego de pernas cruzadas sobre a mesa, assobiando baixinho, como quem não tá nem aí pro mundo.
— E aí, doutor? Vai tentar me convencer de alguma coisa? Porque, olha, confesso nada, hein! Prova eu sei que vocês não têm — desafiou o Zé, ajeitando o colarinho da camisa surrada.
O Perito, com aquele jeito de quem já viu de tudo, abriu devagar sua preciosa maleta. De lá, tirou uma fita adesiva, papeis filtro e um frasquinho com um líquido transparente que brilhava na luz da lâmpada.
— Tá vendo isso aqui, Zé? — perguntou, com uma voz tão mansa que parecia até de padre em sermão.
Zé prego, desconfiado, inclinou a cabeça.
— Que é isso, doutor? Água benta?
O Perito deu um sorriso de canto de boca.
— Quase. Isso aqui é um reagente especial. Ele detecta resíduos de disparo de arma de fogo e se recentemente você disparou alguma arma ele identificara resíduos de íons chumbo. Basta passar um pouquinho disso nas suas mãos, e pronto: se você atirou, não tem mais conversa, esse líquido vai ficar vermelho que nem brasa!
Zé prego deu uma risadinha nervosa.
— Ah, doutor, essa aí é boa. Mas e se eu lavei as mãos, hein? Quero ver!
O Perito balançou a cabeça com um ar de quem sabia mais do que dizia.
— Zé, Zé… Pode lavar as mãos até com soda caustica que não adianta. Esse reagente pega até o que tá escondido no fundo dos seus poros. Se você meteu a mão em uma arma, a gente vai saber.
Foi aí que Zé Prego começou a suar. Primeiro uma gotinha na testa, depois um rio inteiro pelo pescoço. O homem começou a remexer na cadeira, o sorriso foi sumindo, e, quando o perito colou as fitas sobre as mãos, recolheu o material residuográfico com a fita, colou em papeis filtro e ameaçou de pingar as gotas do líquido transparente, ele não aguentou mais:
— Peraí, peraí, doutor! Tá bom, eu confesso! Fui eu que matei o Sebastião! Mas foi sem querer, a arma disparou! Me dá um desconto, vai…
O Perito recolheu o material residuográfico coletado e junto com o frasquinho guardou tudo em sua maleta, enquanto o delegado Tenor entrava na sala com um sorriso de orelha a orelha.
— Doutor, que líquido mágico é esse aí?
O Perito deu uma risada curta.
— Água destilada, delegado. Apenas água, sem mais nem menos. Mas vamos deixar o Zé Prego fora disso. O material coletado ainda precisa seguir para o laboratório da Capital, onde um reagente – o rodizonato de sódio – poderá reagir com íons de chumbo, se presente. Se houver um resíduo de tiro, ou contato com produtos que contenha esse elemento ele se manifestara em um complexo colorido característico. No entanto, é sabido que esse método pode gerar resultados inconclusivos, devido à sua inespecificidade. Além disso, o rodizonato de sódio é um reagente obsoleto, com um histórico de ineficácia. Idealmente, teríamos acesso a um microscópio de varredura eletrônica para detectar moléculas de resíduo de tiro, conhecidas como GSR, que contêm a combinação única de chumbo, bário e antimônio. Infelizmente, essa tecnologia não está disponível para a perícia do estado. Portanto, o delegado concluiu que, sem a confissão do suspeito, seria praticamente impossível encontrar provas contra ele.
Zé Prego, depois de ter assinado uma confissão por escrito e saber do que havia acontecido, ficou rubro de raiva, quase do mesmo jeito que o Perito tinha descrito o tal “reagente”. E Taboado nunca esqueceu do dia em que um homicida foi preso com uma gota de água e um bocado de esperteza.
O perito, como sempre, ajeitou o chapéu e foi pra casa, deixando pra trás mais uma história que ia virar causo contado na roda de viola por gerações. E o povo? Ah, o povo dizia:
— Esse perito é danado demais. Se brincar, faz até o vento confessar onde esconde os segredos!