A Velha Senhora*
O dia em que ela esqueceu de acordar para viver eternamente feliz
Publicado
em“Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu/Ela me conta sem certe tudo que viveu/Que gostava de política em 1966/E hoje dança no frenétic Dancing Days“. (Tigresa, Caetano Veloso)
Na coxia, a atriz inspirou o ar dos deuses e entrou no palco. Sob as luzes, aos 95 anos, iniciou a sua despedida da grande cena. O texto escolhido não poderia ser outro: “Um bonde chamado desejo”, de Tennessee Williams. Peça marcante sobre o envelhecimento e a juventude.
“Mesmo depois de tantos anos, a coxia continua sendo o meu útero, o lugar onde sinto-me no limite do salto no trapézio sem rede de proteção. Vou ou não vou? É o meu derradeiro ato de amor, o canto do cisne. VOU!”
Impossível não sentir o mesmo frio na espinha e o calor no coração que sentiu em 1957 ao sair da coxia para enfrentar o teatro meio vazio na estreia da peça “Véu de Noiva”, de Nelson Rodrigues ao lado de Fernanda Montenegro. Outros tempos. Agora, não. A coisa é mais profunda. Melhor deixar na pena de Tennessee Williams:
“… a pureza é o traço fundamental daquilo a que chamamos vida…envelhecer não é apenas uma questão psicológica: é física. O que faço com essa relação? Uma velha que ainda acredita no amor?”.
A entrada foi triunfal. A plateia parou a cena e aplaudiu por cinco minutos. A velha senhora fez o gesto de reverência tentando se concentrar e assim foi até o gran finale do espetáculo. No camarim, recebeu flores com um bilhete apaixonado:
“Jamais vi uma interpretação tão iluminada como a de hoje. Você é infinita. Te amo”.
Pouco antes de deixar o camarim, despediu-se de Lola, a negra, sua fiel camareira de tantas décadas. Já em casa, abriu a garrafa do scoth guardada há anos para a ocasião, tomou um longo e aconchegante gole e exclamou:
“Valeu!”
Na manhã seguinte esqueceu-se de acordar e foi feliz para sempre.
………….
*Para Nathália Timberg e Fernanda Montenegro