Seus olhos jorravam sangue enquanto caminhava, e as serpentes em seus cabelos agitavam-se, inquietas. Seu nome era Medusa, uma das Górgonas, a única mortal de três irmãs. Era filha de deuses marinhos e neta do Mar e da Terra. Fora amaldiçoada por Atena, a quem servia fielmente como sacerdotisa. Poséidon a violentara, e a deusa da sabedoria, mostrando não ser tão sábia assim, vingou-se da vítima, não de seu irmão agressor, fazendo o olhar da linda jovem caída em desgraça ser capaz de transformar seres vivos em pedra. Desde esse dia, listada entre os monstros, vagava pelo terreno pedregoso da Hélade continental e insular, entregue a seu cruel destino.
Mas, então, por que as aldeias enviavam mensageiros, os olhos cuidadosamente protegidos, para guiá-la até elas? Por que a gente das ilhas mandava barcos, disputando a sua presença?
É que, com o tempo, os poderes de Medusa tornaram-se mais flexíveis e sofisticados do que previa a maldição original. Quando ela entrava em uma aldeia, encontrava a população reunida, à espera. Sempre explicava o que ia acontecer, e advertia:
– Acidentes acontecem. Quem não quiser correr risco algum, pode sair agora, não vou ficar ofendida e castigá-lo, a ele e aos seus.
Alguns pais, temerosos, arrastavam os filhos. Mas a maioria ficava.
Uma a uma, as crianças eram conduzidas diante da Górgona, depois de receberem instruções para ficar bem quietinhas. Ela dirigia-lhes um olhar rapidíssimo, de esguelha, que mal lhes roçava o corpinho – e, no ato, o menino ou a menina ficava mais rijo, mais duro, mais forte. Isso era importante para fazer frente às dificuldades e à miséria da vida rural. Só que às vezes um garoto ignorava as advertências paternas, mexia-se, era atingido em cheio pelo olhar mortífero e transformava-se em pedra. É, como Medusa havia explicado, acidentes acontecem.
Em um segundo momento, Medusa ia à caça dos poderosos da aldeia – os sacerdotes, autoridades locais, os ricos, donos de mais terras. A maioria estava bem escondida, esperando a partida da Górgona, mas os aldeões sabiam onde encontrá-los e a conduziam até eles. Medusa dava-lhes um olhar contido, cuidadosamente dosado por tentativa e erro, e seus corações de pedra voltavam a ser de carne. Nos dias seguintes, eles brincavam com os netos, batiam mais raramente em suas mulheres, diminuíam os juros dos empréstimos feitos aos camponeses pobres…e acima de tudo, voltavam a sorrir.
Alguns, impermeáveis ao olhar do monstro, fingiam ter mudado. Mas eram traídos pelo olhar duro, pelo sorriso falso, que parecia uma careta, pela relutância em melhorar a vida dos mais pobres… As crianças, impossível enganá-las por muito tempo, eram a primeira a se afastar novamente deles. A gente da aldeia identificava esse e os demais indícios de que a transformação fracassara e informavam Medusa, que transformava o recalcitrante em pedra. Simples assim.
Havia quem fugisse antes da chegada da Górgona, retornando apenas depois de sua partida. Mas eram poucos, a decisão de solicitar a sua presença fora tomada em conversas sussurradas entre os mais pobres, que não chegavam aos ouvidos das famílias da elite. De qualquer modo, assim que eles retornavam à aldeia, pimpões, os camponeses os abatiam com paus e pedras. Simples assim.
Em geral, Medusa permanecia de três ou quatro dias no local. De dia, caçava as vítimas; à noite, banqueteava-se com as melhores carnes e os fortes vinhos locais. Em seguida, recebia os jovens que enfrentavam as picadas das cobras de pouco veneno. Um macho diferente por noite, porque ela, injustamente castigada quando era uma sacerdotisa virgem, estava tirando o atraso.
E então ela ia embora. Um guia, os olhos cuidadosamente protegidos, a conduzia até os limites da aldeia. Avançavam um pouco mais, e ele a entregava aos cuidados de alguém de uma localidade vizinha, encarregado de levá-la a uma nova missão.
E assim vivia Medusa, neta do Mar e da Terra, benfeitora da gente pobre da Hélade. Até que um semideus de meia tigela chamado Perseu, filho de Zeus e de uma rainha, fundador de cidades e de dinastias – um aristocrata até o último fio de cabelo, indiferente à miséria da grande maioria dos camponeses – matou a Mãe dos Pobres. Era assim que alguns, num evidente exagero populista, a chamavam, vendo nela uma espécie de Evita Perón helênica, predecessora em mais de 3.000 anos da santa de Buenos Aires.