Agenor era um devoto leitor dos textos gnósticos dos primeiros tempos do cristianismo. Quer dizer, considerava-se e podia ser considerado gnóstico, adepto da gnose ou do gnosticismo. Só que, devido a seu nome – e por pura maldade dos amigos –, passou a ser chamado de Ag, o gnóstico.
O que evoluiu (descambou) para Ag gnóstico e em seguida, claro, para agnóstico. O pobre multiplicava as explicações sobre os dois conceitos, praticamente opostos.
– Não, não sou agnóstico – repetia até ficar sem voz. – Um agnóstico afirma que, devido à falta de provas, não se pode defender a existência ou inexistência de Deus. Já os gnósticos, que nem eu, acreditamos em Deus, o supremo Criador, e pretendemos liberar a centelha divina que existe em cada um de nós por meio do estudo, da obtenção do conhecimento espiritual.
E concluía, entusiasmado:
– Pois o termo gnose deriva do substantivo grego para conhecimento. No caso, conhecimento da dimensão espiritual.
Mas todo esse blábláblá não o levava muito longe. Afinal, um cara chamado de Ag gnóstico só podia ser agnóstico, e fim de papo.
Certa noite, Agenor meditava sobre as verdades ocultas em um antigo texto gnóstico, quando se materializou, em sua sala, uma entidade sobrenatural. Parecia um grande felino, com o pelo cheio de manchas escuras.
Parecia…não, era uma enorme onça-pintada!
– Ajoelha-te perante teu deus, ó mortal – miou (rosnou) a onçona.
Ag tremeu de medo, mas permaneceu fiel a suas convicções.
– De…deus? Não, antes deveis ser uma materialização do Demiurgo, o poderoso criador deste mundo. Em alguns textos gnósticos, o Demiurgo é representado sob a forma de um leão; faz sentido aparecerdes, a um gnóstico do Brasil, como uma onça-pintada das nossas matas. De qualquer modo, curvo-me respeitosamente diante de vós.
Ao vê-lo obedecer, o felino pareceu ronronar, feliz como um pinto no lixo.
– Tendes alguma mensagem para os que vos reverenciam? – indagou, ansioso, Ag, o gnóstico.
– Não, estava à toa na vida, então resolvi fazer uma visitinha. Só avise que os demais devotos podem esperar visitas minhas.
E desapareceu, como uma chama que repentinamente se apaga (não por acaso, para muitos gnósticos, o Jeová do Antigo Testamento, que apareceu a Moisés sob a forma de um arbusto ardente – que a Bíblia chama de sarça ardente – é uma das manifestações do Demiurgo).
Depois que passou o perigo de virar chiclete de onça, Agenor permaneceu longo tempo mergulhado em reflexões. Afinal decidiu-se, e então agiu com presteza, como que para recuperar o tempo perdido.
Primeiro, reuniu todos os seus queridos textos gnósticos. Pensou em queimá-los, não teve coragem, mas os guardou em um armário fechado a sete chaves (figura de linguagem, era uma chave só, mas foi o suficiente).
Em seguida, enviou uma mensagem pelo whatsapp todos os integrantes de seu círculo gnóstico. Foram apenas estas palavras:
“Estou fora da gnose. A partir de agora, podem me chamar de Ag, o agnóstico”.
Ele sabia que os outros o estariam chamando de traidor, de trânsfuga, de apóstata, de vira-casaca, mas não deu a mínima. Também não sentiu o menor peso na consciência por não os informar sobre a visita da onça guaçu. Por que o faria, afinal? Ele encarara o Demiurgo e sobrevivera; que os outros se virassem.
Por fim, quando o interrogavam sobre suas crenças filosófico-religiosas, Ag, o ex-gnóstico, respondia de maneira brusca:
– Sou agnóstico. Não disponho de elementos para afirmar a existência ou inexistência de Deus. E mais, quero ardentemente que todo aquele que insistir nesse tema se exploda!
E se afastava, empertigado mas suando frio. Vai que a onçona escutava?
Com certeza não ficaria feliz em ter sua divindade ou demiurguidade posta em dúvida. E então, dente no Agenor, gnóstico ou agnóstico, para uma onça ultrajada tanto fazia. Que os senhores deste mundo são ciumentos e vingativos. A começar por Jeová, o sarça-ardente.