Tomar um sorvete de colher não é o mesmo que tomá-lo na casquinha. A primeira experiência exige certa precisão e ritmo; a segunda, liberdade e jogo de cintura. Afinal, não se pode controlar o sabor que escorre pela boca, pescoço e dedos. Estimados leitores, não falo aqui de inspiração, mas da beleza paradoxal da escrita: a selvageria da consciência.
A literatura é uma coisa gozada.
Tenho conversado com poetas e críticos próximos sobre a necessidade de validação que muitos de nós, escritoras e escritores, experimentamos. É claro que alguns sentem isso mais intensamente, outros menos.
Quem nunca se pegou angustiado diante do olhar do outro, especificamente à espera de um retorno do leitor – e, por extensão, de tudo que move o mercado literário?
Marguerite Duras, em Écrire, diz que a escrita é uma coisa gozada e que não se pode escrever sem a força do corpo. Assim, é preciso deixá-la sair com algo que remete à corporeidade: o erotismo da palavra, a palpitação, o sonho, a paixão, a inovação e o desprendimento. A escrita que não se detém às convenções, ao mercado, ao olhar alheio. A palavra que cresce com a força do corpo e a experiência da razão a fim de tornar-se vital.
O prazer de lambuzar-se com o sorvete na casquinha.
A liberdade de entregar-se por inteiro, sem tabus ou restrições.
A poesia, então, como um cavalo silvestre, intempestivo, gigante, galopando livremente – e não como um cavalo de corrida à mercê de apostas e apostadores.
Lembro-me, nesse ponto, do admirado poeta, matemático e físico chileno Nicanor Parra (1914-2018): “Suprimirá los premios literarios/Pues no somos caballos de carrera/versus un deudor feliz/Cuántos acreedores postergados”.
Traduzindo os versos para um português mais corriqueiro, teríamos algo como:
“Vamos acabar com os prêmios literários, porque a gente não é cavalo de corrida. De um lado, tem um devedor feliz/ do outro, muitos credores ficam na espera”.
O gozo literário independe da indústria do livro.
A literatura livre, desprendida e curiosa encontra a expressão genuína e profunda na experiência humana. Quando uma autora ou autor se lança à escrita sem se limitar pelas exigências do mercado literário e da indústria do livro, legitima a própria voz, tornando-se livre para explorar temas e perspectivas. Soltar-se, portanto, das amarras mercadológicas leva a arte da escrita para além do bem-estar pessoal ou do mero entretenimento coletivo. A arte transforma-se em um espaço para o questionamento e a desmistificação de verdades pessoais e coletivas. Todo esse processo gera transformação e diálogo, pois, livres de tendências comerciais e dos holofotes, ocorre um encontro autêntico.
Retomemos o poema de Nicanor Parra, no qual o poeta dá voz ao seu projeto literário, que ele denomina de antipoesia: uma experimentação poética que subverte as tradições literárias. Apesar de sua constante crítica ao establishment, o poeta foi indicado várias vezes ao Nobel e recebeu o maior prêmio do mundo hispânico, o Prêmio Cervantes, em 2011. Sem dúvida, Parra abriu novos caminhos para a poesia contemporânea com sua visão de uma literatura mais democrática e acessível.
O poema citado na sessão anterior intitula-se “Los premios literarios” e nele Parra critica a forma como a literatura é percebida no sistema de competição e reconhecimento. A comparação com os cavalos de corrida evoca a ideia de que os escritores não deveriam ser tratados como competidores. Caso isso ocorra, eles se tornam devedores de um sistema que não valoriza sua criatividade. Ao mesmo tempo, muitas outras vozes permanecem à margem, sem o apoio e o reconhecimento que merecem.
Cavalos de corrida são condicionados para o torneio, aprisionados às perspectivas alheias e a fórmulas e normas que não refletem sua verdadeira expressão artística.
Certamente, trata-se de um ciclo vicioso: escrever para agradar, agradar para se adequar e, ao se adequar, afastar-se de si mesmo.
Ficar na baia é confortável, retornando à bela metáfora de Parra. Mas você já se imaginou correndo livre, sem nenhuma aposta?
É claro que todos nós, que nos dedicamos à arte literária, desejamos comunicar ao outro aquilo que nos move. E, obviamente, cada um de nós já sonhou, por exemplo, em publicar por determinada editora, participar de certos eventos ou receber o prêmio X ou Y. No entanto, esses são apenas endereços pelos quais passamos.
A literatura é, portanto, um campo aberto e infinito. Cavalgar por sua esfera livremente é encontrar o próprio ritmo. E é ele que nos faz prosseguir.
Pegue, pois, a sua casquinha e lambuze-se: a literatura é mesmo uma coisa gozada.
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Sarah Munck, mineira de Juiz de Fora, professora do IF-Sudeste, escreve no Substack sarahmunck.substack.com, e é autora do livro de poemas “O Diagnóstico do Espelho”, disponível aqui: https://mondru.com/produto/o-diagnostico-do-espelho/?srsltid=AfmBOoosuyBea-zGNuM0gkMocZRgrHmNos8rpReWGzkaafAEVKXr6Y2G)