Caso amoroso-policial
O ex-marido, o amante e os biscoitos do delegado
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emCardoso, apesar de separado há mais de dois anos de Laura, havia se comprometido a pagar o seu aluguel. Não por bondade, diga-se de passagem, mas por culpa. Sim, isso mesmo! Culpa! Pura culpa! É que, enquanto casados, ela o pegou a pleno pulmões sobre Luana, a vizinha de não mais que duas dezenas de primaveras.
Por coincidência ou não, Laura arrumou um sala e quarto bem em frente ao armarinho de Cardoso. De tão em frente, que bastava um pequeno levantar de olhos do homem para avistar o lar da sua ex-esposa, que, de vez em quando, cismava em deixar as cortinas escancaradas. Talvez por economia, já que todos no bairro reclamavam do aviltante preço da energia elétrica.
Certo dia, lá estava o Cardoso recostado na parede externa da loja, coçando sua barriga saliente de um típico quarentão. De vez em quando, passava uma ou outra anca que despertava seu sorriso de cobiça, mas, talvez tomado pela mesma culpa que o obrigava a bancar o aluguel de Laura, ele tentava se recompor e, sem se preocupar com qualquer discrição, voltava o olhar para a janela do outro lado da rua. E foi justamente nesse instante, que ele deu de cara com Laura sendo sufocada por um beijo voluptuoso do Gilmar, que nada mais era do que o rapazola que trabalhava na sorveteria ao lado.
Um grito de horror escapuliu das profundezas da garganta de Cardoso, enquanto ele tentava empurrar o próprio corpo até o outro lado da rua. Algumas pessoas que passavam se assustaram, enquanto outras direcionaram seus olhos curiosos para a indiscrição dos pombinhos, que ainda se mostravam alheios à fúria do comerciante.
O dedo insistente de Cardoso não parava de apertar o botão do interfone do apartamento 101. Isso, aliás, foi o que fez com que aquelas duas línguas dessem trégua naquela batalha sem fim e, então, Laura foi ver quem era. Não fazia ideia e, toda saltitante, foi atender o chamado desesperado.
– Alô!?
– Laura, abra essa porcaria agora!
– Cardoso, o que você quer?
– Abra logo essa droga!
– Olha que vou chamar a polícia!
No entanto, antes que essa conversa pudesse dar frutos adocicados, Cardoso jogou o corpanzil sobre a porta, que não resistiu. Esbaforido, ele subiu as escadas, enquanto, lá no apartamento, o franzino Gilmar abotoava as calças, ao mesmo tempo em que avaliava se valia a pena tentar uma fuga nada honrosa pela janela. Todavia, logo foi convencido pelas insistentes batidas na porta do apartamento e, dessa forma, preferiu o voo de não mais que três metros à surra que, certamente, o aguardava.
Laura gritava sem saber se por causa das violentas batidas na sua porta ou, talvez, pela fuga cinematográfica do Gilmar. Aliás, uma fuga onde ele era não apenas o astro do filme, mas também o próprio dublê. Ela correu até a janela, quando viu que o amado havia sido algemado por Santana, policial da delegacia do bairro. O agente da lei, sem estar a par da situação, supôs que o amante era, na verdade, um gatuno. O policial conduziu bravamente o suposto larápio para a delegacia, onde o apresentou, quase de imediato, ao delegado.
Sentado à ampla mesa na sala quase gélida por conta do ar condicionado localizado na parede ao lado, o delegado pegou um dos biscoitos amanteigados que havia recebido como agrado do dono da padaria da esquina. Entretanto, antes que pudesse levá-lo à boca, ouviu uma gritaria sem fim vinda do balcão da delegacia. Santana e o delegado foram ver o motivo de tanto escândalo, quando constataram que se tratava do ex-casal Laura e Cardoso, que já era bem conhecido daquele ambiente tão acostumado a registrar crimes.
Enquanto a autoridade policial tentava entender o porquê do escândalo, Gilmar, que havia ficado na sala do delegado, apesar de algemado, se levantou e foi até a caixa de biscoitos. Debruçou-se sobre ela e começou a degustar aquela iguaria. Comeu todos, já que precisava recompor as energias gastas nos longos e apaixonados beijos e, principalmente, pela fuga digna do Zorro. E, assim que ouviu os sapatos estalando no chão frio do corredor, recompôs-se, cinicamente, na cadeira, como se nada tivesse acontecido.
Era o Santana, que havia sido mandado soltar o suposto gatuno, que, agora, todos sabiam, era nada mais do que o novo amor da Laura. O policial, sem dizer uma palavra sequer, retirou as algemas dos pulsos do quase adolescente Gilmar. Em seguida, ordenou:
– Pode ir embora!
O rapaz nem se deu ao trabalho de perguntar alguma coisa. Tratou logo de sair daquele ambiente e, ao passar pela entrada da delegacia, quase foi agredido por Cardoso, que teve que ser contido por outros policiais. Em seguida, o delegado voltou para sua sala, onde flagrou o Santana, com as pontas dos dedos embebidas em saliva, tentando buscar as migalhas que ainda restavam na caixa de biscoitos amanteigados.
– Santana, que droga é essa? Além de prender o cara errado, você ainda acabou com todos os biscoitos!