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‘O Inferno Somos Nós’ trabalha a cultura da paz

Foto/Divulgação

Em uma manhã de domingo de setembro do ano passado, o historiador Leandro Karnal e a monja Coen, fundadora da Comunidade Zen-budista do Brasil, se encontraram para uma longa conversa sobre a questão da cultura da paz e sobre como ela poderia ajudar na construção de uma sociedade mais tranquila e menos violenta. Àquela altura, muito ódio havia sido propagado nas redes sociais. Quase nada mudou desde então – e isso torna O Inferno Somos Nós, livro resultante desta conversa que será lançado nesta quarta-feira, 11, uma espécie de resposta ao que estamos vivendo.

“O Brasil é um palco de ódio e de polarização, como em muitas partes do mundo. A diferença é que nosso imaginário era de paz e harmonia, concórdia e cordialidade. Removida a fina pátina social, encontramos dores agudas e muita raiva”, comenta Karnal, colunista do Caderno 2, que autografa a obra ao lado da monja Coen na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2 073), às 19 horas.

Lançado na coleção Papirus Debate, o livro tem como subtítulo Do Ódio à Cultura da Paz. E por onde começamos esse processo? Karnal responde, em entrevista por e-mail. “Começa pela compaixão, pela capacidade de sentir com os outros e reconhecer todos como seres humanos. Além disso, o conhecimento de si ajuda a não transferir, automaticamente, minhas frustrações para outros campos, como trânsito e redes sociais. Por fim, o velho conselho medieval: odiar o pecado e amar o pecador. Odeio o crime, o tráfico de drogas e de pessoas e a corrupção. Porém, mesmo o criminoso continua sendo uma pessoa com direitos.”

“O indivíduo sem muito aprofundamento reflexivo dirá: ‘Queria ver se fosse com sua filha’. Se a violência fosse com alguém que eu amo, provavelmente, eu teria impulsos assassinos de vingança. Exatamente contra a vingança pessoal surge a lei acima das passionalidades individuais ou grupais. A lei existe para ponderar mais do que a ‘vendetta familiar’. O sentimento de vingança é compreensível em cada indivíduo, a sociedade organizada em torno da lei surge para que eu ou qualquer um não tomemos o poder de polícia nas mãos. Sem isso, teremos a barbárie absoluta.”

Para a monja Coen, a partida desse caminho é o autoconhecimento. “Acredito que conhecer a si mesmo é ir além da própria história pessoal. É conhecer o que é o ser humano, a mente humana, como ela é formada, do que foi alimentada para que se manifeste de determinada maneira e como esse sistema pode ser modificado. Pois ele pode ser modificado, como um computador”, diz, no livro

Ela destaca, ainda, que se quisermos transformar uma cultura de violência em uma cultura de paz precisaremos ter muita resiliência. E que mais do que tolerar, é preciso compreender e respeitar.

“Uma pessoa pensar diferente de mim é muito bom, caracteriza democracia, capacidade de debate e até aprofundamento dos meus argumentos”, comenta Leandro Karnal. Atacar o racismo também esteve em pauta. “Racismo não é divergência, racismo é crime, como pedofilia ou violência contra as mulheres. A divergência é saudável no limite da lei e da ética. Racismo é violação constitucional e não pode ser tolerado. Não existe debate com racista, não existe um ‘outro lado’. O bárbaro atual é o que não admite a existência biográfica do outro. Racistas são bárbaros”, diz Karnal.

No livro, o historiador comenta que em nome do bem quase todos fazemos o mal e também fala na imposição do ‘bem’ sobre os outros. Para evitar o mal maior, em primeiro lugar, ele conta ao jornal O Estado de S. Paulo, não se deve, jamais, dividir o mundo entre o bem (meu lado) e o mal (outro lado). “Dois judeus famosos advertiram sobre a ambiguidade das pessoas que se acham virtuosas, Jesus e Freud. O ódio em nome do bem é o pior de todos: ele destrói com mais ênfase porque se acredita protetor dos valores éticos mais elevados. O lema da Inquisição era Misericórdia e Justiça. Os campos de concentração nazistas exaltavam o trabalho no portão. O ódio virtuoso é muito perigoso, porque cega com mais facilidade. O mal maior é sempre tentar destruir a existência do outro, porque vida é o valor supremo.”

Monja Coen e Leandro Karnal se conhecem há 10 anos, mas pouco conviveram. “Duas pessoas muito diferentes em dois mundos quase opostos e, no fundo, descobrindo dois seres humanos muito parecidos. Talvez esse seja o caminho correto: ao aprofundar o conhecimento de alguém eu percebo que alguma desconfiança ou ressentimento que poderia existir se dissipa. Conhecimento diminui o medo”, conclui o historiador ao comentar a experiência do diálogo transformado agora em livro.

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