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Crônicas periciais

O pescador, a serpente e os mistérios do jatobá

Publicado

Autor/Imagem:
Amilcar da Serra e Silva Netto - Texto e Imagem

Durante uma pescaria entre três amigos, o cenário idílico foi abruptamente transformado. De repente, o sol se escondeu, como se tivesse sido engolido por um manto de escuridão. Uma ventania terrível irrompeu, e nuvens densas e ameaçadoras se agruparam sobre o Rio Jatobá, nas proximidades do município de Rochedo/MS. O ar, pesado e sufocante, exalava o aroma inconfundível da terra molhada, prenúncio da chuva que se aproxima – uma chuva que prometia ser nada amistosa. As águas do rio, antecipando a fúria da tormenta, começaram a se agitar, turvas e barrentas, dando origem a correntezas e redemoinhos, como se o próprio rio pressentisse o caos que se avizinhava. As nuvens carregadas, pesadas de chuva, anunciavam um dilúvio iminente.

Nesse ambiente sinistro e aterrador, a linha de pesca de um dos três amigos ficou presa no fundo do rio, sem qualquer possibilidade de ser libertada de fora. Diante da tempestade que se aproximava, um dos pescadores resolveu agir: mergulhou nas águas turvas e revoltas, na tentativa de soltar a linha de pesca antes que a tempestade se intensificasse, não mais emergindo na superfície. Após um tempo angustiante de expectativa sem resposta visual, o segundo pescador, tomado pelo desespero e pela incerteza, lançou-se em busca do amigo desaparecido – e também não retornou à superfície.

O terceiro pescador, sozinho na margem, sentiu o peso do silêncio se instalar, interrompido apenas pelo barulho das águas agitadas do rio e do vento uivante. O medo o envolvia como uma sombra, enquanto imaginava o que poderia ter acontecido aos dois. Recentemente, ele havia testemunhado uma enorme sucuri deslizando nas águas, e essa imagem aterrorizante o assombrava, impedindo-o de ir atrás dos companheiros e, talvez, ser mais uma vítima da serpente do rio.

Enquanto relatava o desaparecimento de seus companheiros ao perito que realizou o levantamento do local, atribuindo o incidente a uma sucuri gigantesca que espreitava sob a superfície da água e que, possivelmente, teria atacado seus amigos nas profundezas do rio, a testa do perito franziu. A credibilidade do testemunho prestado pelo sobrevivente oscilou diante do conhecimento que o perito tinha sobre os hábitos das sucuris do Pantanal: essas serpentes, ao contrário de outras espécies maiores encontradas em outras bacias hidrográficas, não costumam atacar presas abaixo do nível d’água. Preferem emboscadas furtivas ao longo das margens rasas, onde suas vítimas podem ser facilmente dominadas, sem os perigos de uma perseguição subaquática e com um ponto de fixação para envolver os corpos das presas. Assim, a confiabilidade da narrativa começou a ruir como um castelo de areia.

A investigação avançou, e a equipe pericial, minuciosa em sua análise, detectou novas inconsistências. Sob as mangas compridas da camisa do pescador sobrevivente – estranhamente usadas em um dia quente – foram encontradas pequenas escoriações em processo de cicatrização avançada, compatíveis com as geradas por unhas humanas, indelevelmente marcando os braços do sobrevivente. Além disso, hematomas antigos, que pela coloração, indicavam uma lesão ocorrida aproximadamente uma semana antes. Essas evidências inexplicáveis sugeriam a participação do sobrevivente em um incidente violento anterior, em local diferente do ocorrido.

No acampamento dos pescadores, outros detalhes surpreendentes surgiram: não havia petrechos de pesca, iscas ou outros itens essenciais que se esperaria encontrar em um local de pescaria. A ausência desses itens básicos reforçava a suspeita de que a narrativa do sobrevivente não era totalmente verdadeira.

Com cada nova descoberta, a teia de mentiras começava a se desfazer. Levado por alguma motivação funesta, o sobrevivente parecia ter arquitetado o desaparecimento dos amigos, criando uma narrativa sombria de ataque de sucuri, confiando nas histórias de pescadores da região, que poderiam lhe servir de álibi. Mas os hematomas e escoriações em seu braço sugeriram uma ação violenta anterior, e a falta dos apetrechos de pesca no acampamento indicava que talvez os amigos tivessem desaparecido muito longe dali. O sobrevivente provavelmente escolheu aquele trecho remoto do Rio Jatobá para sustentar sua versão, acreditando que as águas turvas e presença de uma suposta sucuri encobririam seu crime.

O pescador, já sem forças para sustentar a farsa, confessou a verdade em sua integridade, revelando ao perito e demais policiais presentes o seu plano friamente calculado, que lançou uma nova e terrível luz sobre o desaparecimento dos corpos desaparecidos, ou seja, declarou o que segue:

“Meus companheiros de pesca nunca se afogaram nas águas do Rio Jatobá, nem foram devorados por uma sucuri lendária. A verdade é muito mais sombria.

Tudo começou uma semana antes, em uma das tantas noites de jogatina que já tinha virado rotina. A cada rodada de cartas, eu sentia o peso da minha dívida crescer, até que se tornou simplesmente insuportável. Eles, meus amigos de mesa e de pesca, já não tinham mais paciência. Toda vez que eu perdia, eles lançavam olhares ameaçadores, exigindo o pagamento.

Desesperado, tomei uma decisão que mudaria tudo. Aquela seria a última noite em que dividiria a mesa com eles. Ganhei tempo sob a desculpa de preparar uma bebida, mas o que fiz foi adicionar veneno de rato em seus copos. Quando eles tomaram alguns goles, a indisposição começou a tomar conta deles, uma estranha sensação que logo se transformou em agonia, visto que sangravam pela boca e pelas narinas. Quando perceberam meu plano, quase sem forças, partiram para cima de mim, arranhando e batendo, mas tudo foi muito rápido. Em um instante, a consciência deles se apagou, seguida pela morte.

Sem testemunhas, removi os corpos durante a madrugada até uma fossa séptica em um imóvel abandonado nas redondezas, um lugar onde ninguém pensaria em procurar. Lancei-os na escuridão daquele buraco, selando a entrada e, ao mesmo tempo, os seus destinos com uma frieza que ainda me assombra. A história da sucuri foi uma invenção que elaborei dias depois, ao notar que o desaparecimento dos meus amigos atraía olhares curiosos e preocupados de amigos e familiares, já que eu fora a última pessoa vista com eles.

Agora, ao olhar para o que fiz, percebo que o verdadeiro monstro que rondou o Rio Jatobá não era uma sucuri mítica, mas sim a ganância humana, enraizada no vício do jogo e no desespero da dívida. E essa ganância me deixou, de certa forma, isolado no esquecimento e na escuridão.”

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