O velhinho de cabelos brancos, ralos, imortal

Chegou o momento em que meu menino se interessa por livros e literatura. Acho natural, apesar de tardio – ele já fez dez anos e, desde cedo, vivia cercado de livros, histórias e leituras na hora de dormir. Ele me pede para ficar acordado até um pouco mais tarde, pois estava fazendo uma leitura interessante sobre animais aquáticos.

Pego na estante e mostro a ele um livro de que eu gosto muito e leio na dedicatória, feita a meu pai: “Ao amigo Celso, um abraço afetuoso do Orígenes Lessa, 31 de dezembro de 1985”. Lá se vão quase 40 anos desde que o autor ofereceu para meu pai um exemplar de “João Simões Continua”, então na sua 11.ª edição. O pensamento foi longe…

Voltei a Werneck, distrito de Paraíba do Sul, cidade da minha família materna, na oficina de Laerte Santos, nosso amigo e irmão do meu padrinho. Frequentemente, estando de férias por lá, meu pai ia visitar o Laerte, fosse para fazer algum reparo no seu velho Fusca 1968 azul-real, ou apenas para jogar conversa fora e beber uma cerveja no bar/padaria da esquina. Numa dessas idas, estava eu com meu pai e lembro de conhecermos lá o Sr. Orígenes, que, brincando, Laerte nos apresentou como “imortal”.

Minha cabeça de criança ficou na dúvida, pensando em como um velhinho de cabelos tão ralos e brancos podia desafiar a vida flertando com a imortalidade. Ainda não fazia ideia de que estava à frente de alguém que vestira o fardão da Academia. Ele era proprietário de um sítio na localidade chamada Inema, e dirigia uma Belina. Ou era um Corcel? Estivemos na dúvida, e cheguei a ligar para Laerte esta tarde, mas ele não pôde preencher esta lacuna da história. Fica valendo a minha versão: era uma Belina. Definitivamente azul.

A conversa foi animadíssima, e eu perguntei ao interlocutor se ele era mesmo de Paraíba. E ele disse que nascera em Lençóis, bem longe dali. Na minha cabeça infantil, havia uma referência a Lençóis como um local paradisíaco, cheio de dunas de areia que vagavam ao sabor do vento. Mas não, o autor era originário de Lençóis Paulista, onde nascera em 12 de julho de 1903.

Foi o primeiro escritor que vi na minha infância. Minto. O primeiro, mesmo, tinha sido Nicolino Visconti, amigo de meu avô, cujas filhas cresceram na mesma rua que minha mãe e tias. Mas ainda não sabia que nosso velho vizinho havia escrito, àquela altura, “A Rosa Azul” e “Três Pontes”. Só descobri tais obras quando ele mesmo me presenteou com “À Sombra das Velhas Palmeiras”, livro de contos que guardo como um tesouro, com seu autógrafo de 28 de dezembro de 1989. Orígenes Lessa foi o segundo. Seu Nicolino, local. Celebridade em Paraíba do Sul. Também dono de terras no Inema. Orígenes Lessa foi planetário.

Não me recordo o que dirigia Seu Nicolino, mas no carro de Orígenes Lessa, estacionado junto de outros na oficina do Laerte à espera de algum reparo, eu entrei e imaginei que dirigia para longe, em estradas belas e impossíveis. Fazia isso constantemente, e me dava ao luxo de escolher dentre tantos carros. Na maioria, Fuscas, é claro – estávamos nos anos 80. Mas havia exceções. Inclusive um Chevrolet preto, dos anos 50, em que eu e meu primo Leonardo entramos uma vez. Até hoje lembro do enorme banco inteiriço, do volante, do cheiro que só um automóvel antigo tem. Terá ali nascido minha paixão por essas velharias? Talvez. Não descarto.

Achava notável quem escrevia livros. E acho até hoje. Pura admiração por quem é assim, abnegado. E Orígenes Lessa estava ali, à nossa frente, acessível e simpático. Só depois fui entender sua dimensão na literatura, e até descobrir que ele havia escrito o livro sobre as memórias de um Fusca. Seu “O Rei, o Profeta e o Canário” foi o segundo livro que me marcou na infância, depois de “Tuc-Tuc”, de Paula Saldanha. Tenho exemplares de ambos, autografados pelos autores. Este é o resumo da minha epopeia – o amor por livros e por carros antigos. E discos de vinil, é claro.

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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com