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Inhaca religiosa

“Obrada” de pastores esvazia discurso de honestidade do mito

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior* - Foto Reprodução das Redes Sociais

Nasci e me criei no subúrbio do Rio de Janeiro, onde, além do natural aprendizado da vida, fiquei letrado em neologismos. Alguns uso até hoje. Vizinho de uma igreja pentecostal, descobri, por exemplo, que a denominação do trabalho dos ministros e pastores desses templos é obra. Muito mais por curiosidade do que por religiosidade, me tornei habitué dos cultos da igrejinha, de pé até hoje no bairro de minha infância. Além dos testemunhos diários e do chamamento dos “irmãos”, me acostumei a ouvir os mais velhos dizendo que irmão fulano (o pastor) estava “obrando”, isto é, estava trabalhando, ocupado com os dízimos ou supostamente pregando a Deus por novos óbolos.

De honrosa ascendência nordestina, já adolescente percebi que o termo “obrar” tem outro significado no Norte e Nordeste. Não é pejorativo, depreciativo, desonroso, desdenhoso, muito menos agressivo. No máximo é engraçado, pois denota uma imperiosa necessidade fisiológica, daquelas que ninguém pode fazer por nós. Pois bem, o tempo passou e esta semana, por meio de um áudio original, o Brasil tomou conhecimento de uma série de grandes “obradas” de pastores ligados ao governo federal, particularmente ao capitão presidente e ao ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, autor confesso de uma dos maiores “obramentos” do terceiro ano de mandato de mito. Alguns muito piores ocorreram em anos interiores.

O que se segue não é invenção de comunista, tampouco fake news para derrubar Jair Messias. É fato. E dos cabeludos. O referido áudio, divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo, revela que Ribeiro afirma, em alto e bom som, que a prioridade de sua pasta é a liberação de verbas do ministério para amigos de um pastor, sempre a pedido do presidente da República. Em qualquer sala de quinta série, os alunos aprendem que isso é crime de improbidade e tráfico de influência. Os que ficam para tirar dúvidas depois das aula normal também ficam sabendo que a tramoia, se confirmada (e foi), rende aos envolvidos demissão, processo e, nos países sérios, cadeia. Por enquanto, nada. Pelo menos esvaziou o discurso de honestidade do mito.

Apesar dessa glamorosa “obrada”, Milton Ribeiro parece um dos mais santos entre os pastores vinculados ao mito e que negociam transferência de verbas federais para prefeituras. Os nomes dos indigitados já fazem parte da lista policial. Está na mídia que um “parça” com interesses no Maranhão pediu 1 kg de ouro para conseguir liberar verbas de obras de educação para o prefeito Gilberto Braga, da cidade de Luís Domingues. Tudo bem que os fatos ainda não estão devidamente apurados, mas está evidente que, pelo menos o MEC, foi transformado em um balcão político-religioso. Obviamente que há pastores sérios e que cuidam do rebanho com extremada devoção. Não conheço nenhum, mas sei que eles existem.

Embora de corrente religiosa bem diferente da pregada pelos pastores evangélicos, convivo com variadas informações sobre o modus operandis dos comandantes desse segmento. Como não sou fiscal tributário, melhor arquivar o que sei. No entanto, não dá para esquecer que, na avaliação de Bolsonaro e de seus aliados e seguidores, Luiz Inácio é ladrão, o PT é um partido de roubalheiras e todos os petistas ou simpatizantes são comunistas e contra o Brasil. Mais do que isso. O governo Lula ainda hoje é acusado de “emprestar” nosso rico dinheiro a fundo perdido para os parceiros da Venezuela, Bolívia, Equador e Cuba. É um fato incontestável. Mas e agora? O que dizer da derrocada da decantada honestidade do governo terrivelmente evangélico?

Qual a diferença entre o din din do povo brasileiro ser “distribuído” a rodo entre líderes esquerdistas tupiniquins e pastores sedentos por valores que fogem do slogan criado pelos marqueteiros do bolsonarismo. Deus acima de tudo ficou para trás. Atualmente, o que vale é a bufunfa acima de todos. O Brasil definitivamente não é para amadores. Todavia, voltará a se erguer tão logo o povo esqueça do odor de morrinha dessa religiosa e cara “obrada”. Dentro desse tenebroso contexto, vale parafrasear um bordão criado por Glória Peres para uma das personagens da telenovela O Clone: Cada mergulho no governo é um flash. De “obrada” em “obrada”, quem sabe no futuro a inhaca experimentada hoje acabe emanando uma defumada fragrância de lírio do campo, cujo simbolismo na antiga Grécia era de alianças proibidas e de tentação. Tudo a ver com o Brasil do faz de conta.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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