Ufanistas de ocasião
Ódio bolsonarista faz do Brasil país entre o bem e o mal
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emApós dois anos de reclusão quase absoluta – o supermercado e as padarias eram meus locais preferidos para as farras -, estou voltando aos poucos ao convívio de novos e velhos amigos, alguns de redações de jornais, rádios e TVs que nem existem mais. Devidamente imunizado com as quatro doses, nesse fim de semana combinei com a turma da meia e da terceira idade um almoço exclusivamente de reminiscências. No máximo, algum caso pitoresco do período de recolhimento domiciliar gerado pela Covid. Proibido falar de cloroquinas, tubaínas ou pesquisas eleitorais. Em um desses lapsos de memória, talvez se permitisse uma citação poética da democracia. Nunca ideológica.
Como gosto de povo, recomendei um desses restaurantes populares, nos quais se come lascas de frango com farofa com prazer e apenas para ajudar a descer as primeiras talagadas de chope. Nada de proselitismo político. Combinação acertada, optamos por uma comprida mesa de frente a um prédio aparentemente “abastecido” por essa enfadonha, mal resolvida e festeira elite brasileira. Aparentemente, porque desde cedo aprendi que os abastados e cultos preferem o anonimato, o silêncio, a simplicidade. Eles (os abastados) reconhecem que o homem culto é somente mais culto e nem sempre é mais inteligente do que o homem simples.
Sem mais tergiversações, enquanto papeávamos os “vizinhos” supostamente mais sábios usavam a varanda de um dos apartamentos adornados de verde e amarelo para gritar palavras de ordem contra a esquerda e louvores desconexos em homenagem ao mito do cerrado. E sempre olhando para o grupo que prometera não falar de quem deixou a desejar ou daquele que nada faz. Entre a perplexidade e a zombaria, até achei interessante, pois cheguei a crer que a turba pudesse me conhecer ou aos meus amigos. Dispensaram de minha parte apresentações menos republicanas. Melhor assim. Mais interessante foi a chance que tive de perceber in loco, isto é, sem apoio da mídia maledeta e comunista, que o país do bem e do mal não é apenas uma invenção do bolsonarismo.
É uma constatação do perfil bolsonarista. Faz parte dos perfis dos defensores do ódio. São os ufanistas de ocasião, os patriotas fajutos. Se enrolam no Pavilhão Nacional e se esgoelam contra as falhas alheias, mas fazem questão de varrer as suas para baixo do tapete. Berram contra a roubalheira de governos que atacam, mas são incapazes de admitir os deslizes dos governantes que idolatram. Mesmo quando a prova é do tipo batom na cueca. Que o digam o pastor Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação, seus dois pastores amestrados e quem mandou liberar o din din público para os denominados homens de Deus. Pobre Bandeira Brasileira! Desfraldam o manto – que deveria ser sagrado e de todos – como se fosse propriedade privada ou como se os colocasse acima de qualquer imperfeição. Aliás, para esse povo, se perfeição nesse mundo pudesse existir, só seria o Jair.
Pobre povo que entende como mito um arremedo de líder, um chefe de Estado e de governo que pensa e age como aluno de quinta série convicto de que vai levar bomba no fim do ano. Não deixei de almoçar, prosear, tampouco chopear. Difícil foi achar resposta para uma silenciosa indagação: Quem são essas pessoas tão estultas e desinteligentes? Enquanto buscava uma única razão para explicar minha repentina resiliência, preferi atinar para o fato político do ano: o pleito geral de outubro. Conclui que, a menos de 100 dias das eleições presidenciais, o grande problema eleitoral não é a urna eletrônica, mas o que existe entre ela e o eleitor: a consciência. Em outras palavras, o equipamento que define, com rapidez e segurança, o resultado da refrega política, não é mais tão assustador para Bolsonaro.
Como o desgastado discurso de fraude não emplacou, sobraram algumas conclusões filosóficas muito atuais. Por exemplo, para o florentino Nicolau Maquiavel, “um estado forte depende de um governante eficaz, com habilidades políticas e, sobretudo, com moral perante todos. Montesquieu defendia, entre outras coisas, a preservação das liberdades civis, manutenção da lei e o fim de tradições medievais. Teórico político e filósofo inglês, Thomas Hobbes definiu o homem como o lobo do homem. Em síntese, contra os lobos da varanda embandeirada felizmente ainda existem cordeiros modestos, esperançosos e suficientemente sábios para suspeitar de pessoas tão ruins de tudo, mas que se acham tão boas. Nem Narciso explica. Eles continuarão atazanando o futuro governo do povo, mas nunca aceitarão que melhor seria se participassem democraticamente da vida do país. Em tempo: só não tomei a quinta dose da vacina porque o restaurante fechou.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978