O Brasil está a menos de dois passos do caos e a poucos metros do limite entre o céu e o inferno. Sabe o que isso representa? Para mim e para os que acreditam nas palavras dos mais sábios, incluindo os cientistas, certamente o fim de um ciclo de paz, sensatez, coerência, honestidade e bonança. Para os seguidores, negacionistas e serviçais do ódio ainda falta uma boa caminhada até que cheguem ao objetivo final do líder e família: acabar com o país, zerar a economia e, se possível, dizimar o povo idiota que insiste em ficar em casa, usar máscara e rejeitar as tubaínas medicinais receitadas pelo profeta do mal e por seus apoiadores mais radicais. Como bom cristão, torço para que o mundo se recupere rápido dos malefícios da Covid-19.
Entretanto, levado pelos lampejos do diabinho que habita o coração de qualquer ser humano, peço diariamente a Deus que, se alguém tiver de morrer, que sejam os debochados, os subservientes, os que fazem pouco caso da vida, os que se alimentam do fígado alheio e ingerem diariamente tubaínas e, principalmente, os que transformaram o ódio em mecanismo de sobrevivência. Rogando antecipado perdão, lembro ao Ser Supremo que, por enquanto, a maioria de mortos é composta pelos que seguem à risca os mandamentos sanitários, os que estão recolhidos e que usam máscara. Infelizmente, esse grupo normalmente é infectado pelos teimosos e soberbos que, durante as festas macabras, não lembram que seus pais, filhos e irmãos ainda não se vacinaram por conta da inércia do governo que eles representam. Novamente perdão, mas que morram eles.
Os alertas diários de médicos e infectologistas sobre a letalidade do vírus, sobretudo de suas novas variantes, parecem ecoar como mantras inversos na alma dos negacionistas. Na contramão das estatísticas, continuam debochando da saturação dos hospitais públicos e privados, consequentemente dos números de infectados e de mortos. E debocham livremente. Na terça (2), o líder de um protesto contra o lockdown proposto pelo governador do Distrito Federal era o sumido bolsonarista Renan Silva Sena, o mesmo que já foi preso por insultar enfermeiros que pediam apoio à vida, atacar o governador Ibaneis Rocha e congressistas e ameaçar ministros do Supremo Tribunal. Uma lástima esse cidadão – se é que ele merece esse tratamento – ainda estar vivo e solto. É o novo velho Brasil. É a nova velha política.
A manifestação liderada por Renan pedia a reabertura do comércio do DF. Ora, logo ele, que é um desempregado fora da lei. Isso prova que, hoje mais do que ontem, protestar é sinônimo de baderna, de balbúrdia e, na melhor das hipóteses, torcer pelo pior para agradar a quem os patrocina. Antes, os manifestantes recebiam quentinhas, pão com mortadela e ki suco. Hoje, têm à disposição ensinamentos de artes marciais, advogados de defesa e até armas. Ou seja, recebem salvo conduto para brigar, esfolar e, se houver necessidade, matar. É a nossa nova e frágil democracia. Em outras palavras, fomos do céu ao inferno em menos de duas décadas. Se alguns exigiam – talvez exijam – a chegada triunfal do Brasil ao buraco negro, cumpriram a missão. Para o mundo moderno, rico, pujante, democrático e com governo sério, hoje somos considerados o pó mofado do excremento de um cavalo manco.
E não esqueçam que esse mundo ao qual me refiro também sofreu – e sofre – com a pandemia, que já afetou 219 países e territórios. Ao todo, o planeta soma 114.795.908 infectados e 2.550.334 óbitos. Os Estados Unidos lideram essa infeliz lista, com 28.737.408 doentes e 515.710 mortes. Terceiro em volume de infectados, com 10.646.926, o Brasil lamentavelmente ocupa a vice-liderança – com relativa folga – na estatística mortuária, com 257.361 óbitos, 100 mil a mais do que a Índia, cuja população (1,353 bilhão de habitantes) é seis vezes maior do que a nossa. Tomara que tudo isso, inclusive o governo, um dia passe. Aí, talvez nos lembremos do poeta K.O’Meara, que, em 1800, escreveu um poema durante a epidemia de peste.
Mais de 220 anos após, certamente avivaremos na alma as lembranças de tudo aquilo que perdemos e de uma vez e, quem sabe, apreenderemos tudo que não aprendemos. “Não teremos mais inveja, pois todos sofreram. Não teremos mais o coração endurecido, pois seremos mais compassivos. Seremos mais generosos e muito mais comprometidos”. Sou fã antigo de O’Meara, mas estou certo de que ele jamais passou por aqui, onde pau que nasce torto, morre torto. Concepção social do senso comum e parte do pressuposto de que as pessoas nascem de determinada forma, sem possibilidade de mudança, o ditado desmente categoricamente o pensamento cartesiano, cujos valorosos seguidores apostavam que a pandemia, ao fim e ao cabo, transformaria as pessoas.
Ledo engano. Os ruins e defensores do ódio continuam mais odiosos. Resolveram se definir como maus e vivem mostrando os dentes e tridentes afiados, sobrando para os bons apenas a torcida pelo entendimento correto do pensamento de Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Ainda estamos muito longe disso. Talvez mais algumas dezenas de milhares de mortos. Quem sabe o início do fim como nação? Logicamente que excluo as exceções, mas, assim como cada país tem o povo que merece, cada povo tem o governo que precisa. Nós temos o nosso. Posso desagradar, mas tenho orgulho de dizer que esse governante não me representa.
*Wenceslau Araújo é jornalista