Os irmãos Grimm, por ironia do destino ou não, escreveram seis contos sobre o relacionamento entre filhos: alguns abordam o tema da irmandade, outros sobre adoção, a chegada de um bebezinho na família e tantos outros. Nesta reportagem, vamos contar apenas a história real de Roberta Carvalho, hoje com 35 anos de idade, mas que teve uma infância de brincadeiras e brigas com os irmãos – e atire a primeira pedra quem nunca discutiu com um.
Recentemente, um meme de aniversário de uma menina de três anos gerou polêmica. Isso porque, na hora do parabéns, a irmã mais velha se apressou e apagou as velas no lugar da aniversariante, que não pôde conter a raiva e partiu para a agressão. Nas redes sociais, muita gente fez piada e até colocou em cheque a saúde mental da garotas. Afinal, esse tipo de comportamento é considerado ‘saudável’, ‘normal’ e deve ser problematizado? A reportagem do Estadão optou por não publicar o meme para preservar a identidade das crianças e viu uma oportunidade de esclarecer alguns pontos importantes quando o assunto é emoção.
Antes dessa reflexão sobre o que é ‘normal’, vamos à história de Roberta. Nos idos dos anos 1990, ela e os três irmãos viviam juntos em Campinas, interior paulista. Porém, ela convivia mais com um deles: o Roberto. Por causa da idade, brincavam, faziam as refeições juntos, frequentavam a mesma escola, dividiam as festas de aniversário. Roberta conta que eram ‘cúmplices’ um do outro e, ao mesmo tempo, existia uma rivalidade: “Mais da parte dele porque, na minha visão, os adultos nos comparávamos muito e constantemente. Acredito que meu irmão, por ser mais novo, sofreu mais com isso do que eu. Eu por ser um pouco mais velha tinha mais compreensão e também, talvez por ser mulher e as construções sociais que vêm disso, tinha um sentimento mais materno em relação a ele”.
Sobre essa necessidade de cuidar do irmão, Roberta lembra de um episódio curioso: “Eu me metia nas brigas do meu irmão na rua e tentava não deixar ninguém bater nele. Mas teve umas duas vezes que o tirei de brigas, não deixei baterem nele e depois dei uns tapas e uns socos no meu irmão. Na minha cabeça, estava tentando ensinar a não se meter em brigas porque temia pela segurança dele. Eu argumentava que se alguém tivesse que bater nele seria eu, porque ia ‘bater com cuidado’. Não me orgulho dessas atitudes e raciocínios, mas é a realidade”.
A rivalidade entre irmãos não apenas pode ser considerada normal como também um fenômeno universal, na análise do psiquiatra Rodrigo de Almeida Ramos: “Vale lembrar o sentido simbólico da história de Caim e Abel. Dos 2 aos 6 anos, em geral, os irmãos são os principais componentes das relações sociais da criança e dessa convivência surge uma relação de ambivalência. Por um lado, uma vivência de solidariedade com brincadeiras em conjunto e apoio emocional. Por outro, rivalidade com disputa, comparação e briga por espaço. O pano de fundo de toda essa rivalidade é a disputa pelo amor ou atenção dos pais”.
Elisama Santos é psicanalista e escreveu dois livros sobre essas relações familiares: Educação Não Violenta e Por que Gritamos. Para ela, os adultos tentam neutralizar sentimentos de raiva e frustração dos filhos, o que só gera ainda mais disputa: “A gente tem que parar de achar que a relação entre irmãos só tem amor, onde só cabe carinho, respeito, porque isso é ilusão. Eles são humanos e, como toda relação humana, cabe uma gama muito maior de sentimentos. A criança sente raiva, tristeza, ódio, muitas coisas. E é importante a gente lembrar que, quando chega um irmão, a criança mais velha está perdendo muito da relação que tinha com os pais, então, ela vai ter que redescobrir um novo papel na vida que é o de não estar só”.
A educadora parental explica que é preciso deixar que esses sentimentos ruins existam e, ao mesmo tempo, redirecionar os comportamentos agressivos. “Tem aquele comportamento inadequado, então, vamos falar sobre ele, dizer que a criança pode sentir raiva, tristeza. Algo como: ‘Estou vendo que hoje você não está querendo conversar com seu irmão, está com ciúmes, você queria que hoje fosse o seu aniversário’. Eu vou conversar e acolher esse sentimento, mas isso não quer dizer que esse sentimento vai deixar de existir”.
Roberta se recorda das constantes brigas com o irmão: “Partiam para agressão física. Pela minha memória, sempre por parte dele: eram tapas, socos e objetos arremessados. Lembro que uma vez ele correu atrás de mim tentando me bater com um cabo de vassoura. De mim, o que me lembro de mais grave foi uma vez que estava bebendo água, ele se aproximou, disse alguma coisa que me irritou, e eu ‘de brincadeira’ fingi jogar a água, que já tinha acabado, do copo nele. Mas eu calculei mal a distância e o copo acertou na cabeça dele. Não machucou, nem teve consequência física, como fazer galo ou ficar roxo. Eu fiquei assustada com o que poderia ter acontecido, mas não me arrependi por completo”.
Bom, já sabemos que a rivalidade entre irmãos é normal, mas será que é ‘saudável’? Em que momento os pais precisam ficar atentos aos comportamentos, por vezes, agressivos?
“Conflitos entre irmãos sempre existirão, mas quando a rivalidade se sobrepõe sobre a solidariedade é aceso o sinal de alerta. Isso se mostra quando a criança aparenta estar irritada com os irmãos e os pais, sobretudo a mãe. Além disso, a criança fica pouco participativa nas atividades da casa, usa frase de menos valia como “ninguém gosta de mim nessa casa” ou ainda começa a deliberadamente quebrar objetos do universo do outro irmão. Pode haver ainda comportamentos regressivos como falar de forma mais infantilizada, roer unhas ou urinar na cama”, afirma o psiquiatra Rodrigo de Almeida Ramos.
E quando a gente fala dessa raiva, esse ódio entre irmãos, não paramos para pensar sobre o que está por trás das emoções. Elisama Santos, no raciocínio a seguir, levanta algumas verdades que podem ser incômodas para muitos pais: “Não existe amar igual. Isso é uma ilusão que pai e mãe falam pra mentir pra si mesmo. A gente ama os filhos de formas diferentes e não existe um ‘amorzômetro’ pra afirmar que esse amor é maior que o outro. E vale para os pais entenderem que cada filho se sente amado de uma forma e observar: ‘Será que estou demonstrando amor para meu filho? De que forma faço isso?’. Porque tem alguns filhos que gostam de ser beijados e abraçados e outros preferem as palavras”.
Como lidar com a rivalidade
Na infância de Roberta, os pais sempre tentavam separar as brigas entre os filhos: “Nos davam broncas e colocavam de castigo. Mas, como meu irmão era menino, a agressividade dele era mais ‘naturalizada’. Ele era um ‘menino muito arteiro, cheio de energia’. Algumas vezes, quando ocorriam brigas verbais mais leves, meu pai brincava dizendo que, se a gente brigasse, iria obrigar a gente beijar o rosto um do outro”.
De fato, não conseguimos mensurar a quantidade de amor ou ódio que sentimos nas relações interpessoais e a disputa para saber quem recebe mais amor parece irracional. Porém, fazer o manejo das emoções, sem ignorá-las, parece ser um bom caminho para os pais.
“É preciso observar quando os filhos não se falam, não se relacionam mais. Não quer dizer que se brigou tem algo de errado. Irmãos vão brigar, trocar tapas mas, normalmente, depois já estão juntos, estão se abraçando e se amando. Como foi com as meninas (mencionadas no início da reportagem). Agora, quando as agressões são constantes, é hora de observar o que essa agressividade ou esquiva do meu filho significa. O que estou deixando passar nessa relação”, ressalta Elisama Santos.
Na opinião de Rodrigo de Almeida Santos, para os casais que ainda têm um filho e estão planejando mais um, o ideal seria fazer um intervalo de três a quatro anos entre uma gestação e outra, porque, no nascimento do irmão mais novo, o mais velho teria mais maturidade afetiva. “Não sendo possível, os pais têm que entender que a rivalidade vai acontecer e o tema deve ser tratado com naturalidade, com os pais muitas vezes entrando na cena de disputa promovendo uma harmonização afetiva. É importante que se entenda que, como são dois seres humanos diferentes, deve-se evitar comportamentos de comparações ou de usar um como exemplo de conduta em contraste com o outro. A solução afetiva é uma escolha pelo estabelecimento do vínculo amoroso entre irmãos”, enfatiza.
E, vamos admitir, ninguém gosta de ser comparado à outra pessoa. No entanto, isso pode ocorrer na relação entre pais e filhos, o que só alimenta a rivalidade e pode gerar consequências emocionais na vida adulta.
A educadora parental Elisama Santos elencou três dicas valiosas.
1 – O amor nunca será igual: “Em regra, temos um filho que é mais fácil de lidar porque não mexe com nosso ego. E temos aquele que solicita um pouco mais de atenção, energia, que exige que você ‘respire fundo’. Se a gente não presta atenção, fica mais com aquele que é mais fácil de lidar e deixa o outro de lado. Então, é bom observar sempre: ‘Estou lidando bem com eles? Estou conseguindo demonstrar amor?’. Vai ter um filho que vai exigir mais esforço pra me relacionar. Observar também como estou falando com eles, se estou falando diferente”, diz a psicanalista.
2 – Nunca atuar como ‘juiz da briga’ entre irmãos: “Cada vez que digo quem está certo e quem está errado, eu estabeleço papéis muito estáticos nessa relação. E esta não é minha função, mas estar ali respeitando os irmãos, restabelecer a capacidade de diálogo de ambos. Dizer coisas como: ‘Se vocês estão nervosos, tenho certeza de que têm a capacidade de conversar e resolver isso’. É um bom caminho”, avalia.
3 – Acolha os sentimentos: “Deixar que os sentimentos que a gente acha que são ruins existam. Escute, permita que exista a tristeza, a raiva, o ‘hoje não queria ter irmãos’. Escute por mais que doa. Você pode dizer: ‘Puxa, filho, também senti isso com o meu irmão’, ‘Às vezes, você só queria estar sozinho, né’, ‘Você queria ter o quarto só pra você, né’. Gente, isso não é concordar! Isso não é falar ‘tá bom, vou mandar a sua irmã pra casa da sua avó porque ela é realmente muito chata’. Isso é deixar que o sentimento exista, é dizer para o filho ‘eu te vejo’.
4 – Nunca compare: “Isso porque as comparações são muito cruéis com os filhos. Fale com eles, sem mencionar o nome do outro. Então, nunca dizer: ‘Sua irmã fez isso, fez aquilo, e você não’, ‘Está vendo como o quarto da sua irmã é arrumado?’. Não! Só diga: ‘Filho, seu quarto está bagunçado e quanto tempo você quer pra arrumar?’. Olha como é diferente, né? Lidar com aquele filho e com a individualidade dele. A comparação mina a relação e pode culminar em brigas muito difíceis entre os irmãos”, conclui Elisama Santos.