Pó de pirlipimpim
Onde está a poesia? Por onde andam (e o que são) os poetas?
Publicado
emAndei refletindo sobre o que é ser poeta hoje em dia. Com a profusão de poesia que nos chega pelas redes, não entendo aqueles que dizem não ter mais espaço a poesia, estar ela morta… Ela tem muito espaço, na verdade, e sobreviveu a esses tempos estranhos, líquidos, fugazes.
Antes era mais difícil. O poeta era o menestrel que cantava. Mais tarde, o poeta se tornou o privilegiado que publicava, num país de poucos leitores. Lembrei um poeta mineiro (eu tenho 50% de mineiridade nas veias), Murilo Mendes, cujo primeiro livro foi lançado em 1930. A edição foi paga por seu pai, um pouco antes meio brigado com o filho pois o menino não tinha emprego fixo, nem ambição. Queria mesmo era viver de poesia. E, de certa forma, viveu.
Fico imaginando quantos não chegaram a debutar nos saraus, não frequentaram as estantes das livrarias, não gravaram seus nomes nos livros da posteridade apenas porque não tinham um pai rico para bancar uma edição. Quantos lindos poemas não devem ter ficado no fundo da gaveta até que a traça os roeu.
Hoje, os menestréis cantam nas redes. A publicação do livro é muito mais acessível e pode ser até sem nenhum grama de papel, imaginem.
E a poesia corre solta, aos borbotões, às escâncaras…
Abro uma dessas redes e leio uma postagem contra a corrente. Dizia mais ou menos assim: “alguns pensam que fazer poesia é apenas escrever períodos curtos, sobrepostos, tentando usar metáforas bonitas.”
Pensei tratar-se de um crítico mordaz. Comecei a explorar suas postagens. E ali encontrei mais: “poesia tem que ter ritmo, métrica. Poesia precisa explorar as formas clássicas. Se a pessoa não faz isso, não é poeta. Apenas pensa que é.”
Mais adiante, a melhor postagem de todas: “se você concorda comigo, me segue e acompanhe o lançamento do meu curso sobre como escrever poesia.”
Pronto… De imediato, veio à mente Agripino Grieco, franco e temido crítico literário do século XX. Será que, ao fim de um artigo exaltando ou destruindo um escritor, ele teria coragem de vender um curso? À distância. Na época, certamente por correspondência. Claro que a credibilidade do “crítico” caiu por terra. Percebi bem suas segundas intenções.
Corte para alguém que entende do assunto. Ao menos para mim é referência. Um poeta. Pergunto a ele: o que é ser, hoje em dia, o que você é? Omitirei o trecho da conversa em que ele me confessou nem saber direito o que é. Até o momento em que entendeu o sentido de minha indagação.
E ele me respondeu: talvez o mesmo que haja sido há séculos. É alguém que, dotado de uma sensibilidade absurda, entranha-se com os males do mundo. Os processa e os vomita, mesmo para quem não quer ou nem sabe ouvir.
Passou longe da resposta por mim esperada. Queria ouvir sobre a técnica preconizada pelo vendedor de curso.
Sigo minha investigação.
Novamente, vou às redes. Determinado grupo de produção poética lança um edital para agregar novos membros. Todos os anteriores me parecem bastante instagramáveis, jovens, livres, performáticos. A seleção é concluída e, bingo, os integrantes escolhidos são instagramáveis, jovens, livres, performáticos.
Pelo critério do crítico-vendedor-de-curso, acho que nenhum se enquadraria no modelo canônico de poesia. Levando em conta a produção de seus congêneres, concluí que não atendem à métrica e à rima. Poesia precisa disso mesmo? Pessoalmente, acho que não. Precisa ter sentido, beleza, ritmo. E dá para ter ritmo sem métrica e sem rima. A quem discordar, cartas para a redação.
Novamente, indago àquele poeta-referência sobre seus jovens colegas. E ele: sinto-me deslocado. Evito até passar perto para não contaminar alguns com minha obsolescência.
Uma obsolescência rebelde, contudo. Mas protesto. Ele ainda é um poeta necessário e que, de alguma forma, me alimenta. Ele mal sabe, mas já chorei, sozinha, lendo-lhe certos versos.
Eu me sinto mais nutrida por provocações do que pelos cânones irrepreensíveis. Aquele verso que, lido, sem que a gente pense muito, mexe por dentro. Atinge um ponto qualquer e faz pensar.
Quisera eu ser um bichinho necrófago de antigas fórmulas (percebam que jamais usei a expressão ‘obsoletas’) para saciar-me delas sem remorsos. Mas a elas retorno e, acima da mera forma, só consigo me encantar com imagens. São as imagens que trazem as sensações, arrepiam a pele, enchem os olhos de água.
Imagens que parecem quadros de uma exposição. Imagens estáticas que, entre si, dialogam, ensinam, propõem, orientam, conduzem e acalentam.
Uma exposição viva. Abre-se a capa, vira-se a página, com sorte até se faz escala numa dedicatória, corre-se até o último verso e, nesse caminho, topamos com campos de girassóis, mistérios, noites estreladas, amores, o mar, perdas, redenção, eras passadas, pessoas extintas, a exaltação da arte, a morte, a dúvida.
É tudo o que eu almejo encontrar num livro de poemas.
……………………………
Cecília Baumann é Editora Assistente do Café Literário