Orestes carregava um amontoado de medos. No entanto, não suportava a ideia de morrer em Recife. Não que tivesse medo da morte, bem como não desgostava da capital. Só que queria ser enterrado na sua Sirinhaém, a pouco mais de 70 quilômetros dali.
— O lugar mais lindo do mundo!
— E por acaso você conhece o mundo todo, Orestes?
— E por acaso preciso conhecer todas as mulheres do mundo pra saber que você é a mais linda, Marinalva?
— Hum… Tá galanteador hoje, meu amor.
A despeito desse romantismo todo, o coração do homem não andava bem das pernas. Vez ou outra, a dor no peito vinha sem avisar. Orestes era levado às pressas para o hospital e, após o susto, voltava para casa dois ou três dias depois. Tais episódios se tornaram mais frequentes, até que o sujeito não retornou.
Antes mesmo do corpo do marido ser liberado pelo nosocômio, Marinalva foi assediada por quase cinco funerárias. Quase porque, assim que o funcionário da quinta apareceu, foi enxotado que nem cachorro. Que nem cachorro, não, pois a mulher era deveras zelosa em relação a essas adoráveis criaturas.
— Marinalva, por favor, daqui a pouco você vai dizer que cães são que nem gente.
— Óbvio que não, Orestes! Cães são confiáveis.
Após expulsar o último urubu que sombreava o cadáver do Orestes, a mulher começou a pensar num jeito de transportar o defunto para Sirinhaém. A distância nem era tanta, mas faltava dinheiro para fazer o trajeto, ainda mais porque Marinalva havia raspado o último níquel do cofre na compra do caixão.
O ataúde era muito grande para caber no Fusca. Se bem que, ela pensou, poderia amarrá-lo na capota. Mas espaço não era o único problema, pois o motor do automóvel já não dava no couro há tempos. Era melhor não arriscar ficar pelo meio da estrada, ainda mais com o moribundo começando a feder.
Marinalva pensou em pedir ajuda para o Alexandre, o vizinho. Ele possuía uma Kombi, mas logo se atentou a um detalhe. É que os dois não se bicavam desde que haviam discutido por conta de futebol. Marinalva, torcedora doente do Santa Cruz, não suportou as provocações do vizinho fanático pelo Sport. Foi aquela saraivada de palavrões, enquanto Orestes, que era Náutico sem grandes paixões, preferiu não se meter.
Diante daquela sinuca de bico, eis que a viúva recebeu uma proposta inesperada. Júlio, que morava no final da rua, soube do problema da mulher e, não tardou, foi bater à sua porta.
— Mas isso não é loucura?
— Não sei por que seria, Marinalva.
— É que o Orestes sempre teve medo do mar.
— Se esse é o problema, tenho certeza de que ele não vai morrer afogado.
— Você tem razão.
Júlio, afamado pescador, havia dito que levaria o caixão no seu barco. Como o sujeito não possuía automóvel, pediu ajuda a outro vizinho, o Laurentino. Este possuía uma carroça, que era puxada pela Filó, mula de maus bofes, mas de força descomunal.
Antes da meia-noite, Laurentino estacionou a carroça em frente à residência da Marinalva. Lá estava também o Júlio para ajudar a colocar o caixão sobre a carroça. Os dois homens, cujos músculos eram talhados diariamente nas respectivas profissões, ergueram o pesado féretro e o depositaram cuidadosamente sobre a caçamba.
Após amarrarem o ataúde, Júlio e Laurentino, acompanhados da Marinalva, subiram na carroça e seguiram para a praia, onde o barco do pescador estava amarrado na areia. O trajeto foi quase silencioso, caso não fosse pelo som provocado pelos cascos da Filó sobre o asfalto duro.
Assim que dobrou a esquina, já era possível avistar a enseada. Mais algumas centenas de metros, Filó sentiu a areia, que abafou o ruído das passadas, agora mais pesadas. Ao comando do Laurentino, a mula estacou ao lado do barco, cujo nome, estampado na sua lateral, era Refrega. Júlio saltou da carroça e, com uma das mãos, ajudou a mulher a descer.
Meia hora após, o barco, já com o caixão no seu interior, foi arrastado até as águas, que estavam calmas. Marinalva e Júlio se despediram do Laurentino, que não aceitou qualquer pagamento. O morto havia sido seu amigo durante décadas.
Sem muitas ondas para serem vencidas, não tardou, o barulhento motor a diesel foi transpondo a distância. Júlio, olhos para frente, vez ou outra observava Marinalva com o rosto voltado para as luzes de Recife, que se afastavam cada vez mais. O pescador calculou que a viagem não duraria mais do que oito ou nove horas, dependendo da vontade da maré. Pobre infeliz, não contou com a chuva, que começou a cair forte quando ainda restavam mais de 40 quilômetros para serem vencidos pelo bravo Refrega.
Júlio, nervos à flor da pele, tentava aparentar calma, enquanto Marinalva, agarrada ao caixão, lamentava a maldita vontade do marido de ser enterrado na terra natal. Quanto transtorno apenas para cumprir o desejo do defunto. Perigava ela e Júlio serem arrestados para a morte. No entanto, foi justamente quando tudo parecia estar perdido, que a natureza resolveu, irônica como ela só, suspender a tormenta.
Abriu-se o céu, que deu passagem para os raios da manhã. Marinalva agora chorava de alívio, enquanto Júlio, apesar de uma furtiva lágrima no canto do olho esquerdo, se mantinha firme no timão. E, pouco mais de uma hora, os aventureiros avistaram as areias da praia de Barra de Sirinhaém.
Marinalva, eufórica, começou a conversar com o marido, mesmo que ele fosse incapaz de respondê-la, enquanto Júlio se sentiu aliviado por ter conseguido se manter firme diante do que ele imaginou ser o fim da linha. Sentiu-se Odisseu e, exausto, sentou-se ao lado da viúva. Por impulso, Marinalva beijou os lábios do herói, que, surpreso, recebeu o prêmio mais do que merecido.
A distância foi vencida e, a menos de duzentos metros da praia, eis que Refrega, ferido mortalmente pela tempestade que enfrentou, começou a afundar. Assustada, Marinalva gritava, enquanto Júlio, mais pragmático, puxou a mulher pela mão e, assim, os dois pularam no mar.
Nadaram e, de vez em quando, olhavam para trás e viam Refrega afundar até que o barco ficou totalmente submerso. Sem ter o que fazer, os dois continuaram nadando e, finalmente, chegaram à praia. Exaustos, tombaram na areia e adormeceram.
Marinalva foi a primeira a despertar. Virou-se para o lado e, por um instante, admirou o corpo de Júlio. Sentada, ela depositou o rosto sobre os joelhos e chorou. O pescador logo acordou.
— Não chore, Marinalva. Estamos vivos.
— Como fui tola! Fiz você perder o seu barco.
— Quanto a isso, não se preocupe.
— E como é que não vou me preocupar, homem?
— Já faz tempo que quero largar essa vida de pescador.
— Deixa de bobagem, Júlio. Você sempre foi apaixonado pelo mar.
— É verdade. Mas, ultimamente, ele tem me deixado enjoado.
Os dois se entreolharam e, então, sorriram. Depois, levantaram-se e, de mãos dadas, foram procurar um jeito de retornarem para Recife.
Quase uma semana após, o caixão, intacto, encalhou na mesma praia. Orestes foi enterrado como indigente no Cemitério Municipal de Sirinhaém. Mesmo assim, o seu último desejo foi realizado.
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Eduardo Martínez é autor do livro 157 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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