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'Degradante'

Organização denuncia caos nos abrigos de pessoas com deficiência

Publicado

Autor/Imagem:
Grasielle Castro

As imagens lembram fotos de unidades de detenção de jovens. A descrição do tratamento que as pessoas recebem, entretanto, parece pior que o imaginário de um sistema penitenciário que abriga presos da Operação Lava Jato, por exemplo.

Faltam itens básicos de higiene pessoal, como absorventes, fraldas — que em alguns casos são trocadas apenas duas vezes ao dia — e escovas de dentes, que são compartilhadas. Na maior parte do tempo, não há nada para entreter ao longo do dia.

Os horários são controlados, e as pessoas não respondem por si. Não podem escolher o que querem fazer; como, o que e quando comer; com quem querem se relacionar… Alguns casos, os considerados mais graves, chegam a ser tratados com remédios, sem que haja consentimento.

Essa condição, considerada pela Human Rights Watch como degradante, é a que vivem as pessoas com deficiência no Brasil. Relatório publicado nesta quarta-feira (23) pela ONG, Eles ficam até morrer: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil mostra que, para quem não convive com essa realidade, ela é mais dura que o imaginário comum desenha.

Se não há meios básicos que permitam uma vida livre, imagine uma vida afetiva. Em uma das instituições visitadas pela HRW, uma funcionária afirmou que as crianças são privadas de contato pessoal. “Não podemos dar isso a elas. Elas precisam ser abraçadas, mas não temos tempo para abraçá-las”, disse.

O relato segue: “Em muitas instituições, eles só fornecem comida e uma cama. As crianças não passam tempo brincando. Os cuidadores estão preocupados apenas em dar comida e colocá-las para dormir”.

Em outra instituição visitada pela HRW, ao meio-dia, os 32 residentes estavam sentados ou deitados em um cômodo grande e escuro sem fazer nada. Os funcionários disseram que eles apagavam as luzes regularmente por causa do calor.

Em 5 instituições no Rio de Janeiro e em São Paulo, os funcionários colocaram as crianças com menos de 10 anos em frente a uma televisão durante todo o período da visita da HRW.

“Estressante” e “chata”, essas foram as palavras usadas por um adolescente com deficiência física para descrever uma dessas instituições, na qual ele vive. “Muitas vezes não tenho nada para fazer quando não estou na escola. Eu não tenho privacidade ou um espaço só para mim”, diz.

Privacidade, inclusive, é algo que falta não só a ele. De modo geral, até mesmo nos banheiros não há privacidade. Uma das instituições superlotadas que foi visitada tinha apenas um banheiro sem portas ou quaisquer outras formas de separação entre os vasos sanitários.

Um lugar como uma dessas instituições “é muito ruim, é como uma prisão”, como descreveu uma mulher de 50 anos, que ficou com uma deficiência física permanente, após uma lesão na coluna, decorrente de violência doméstica.

“Eu não quero ficar aqui. Eu sou obrigada a ficar aqui. Meus filhos não querem me ajudar em casa. Embora dois dos meus filhos venham me visitar a cada duas semanas, eu nunca saio. Eu gostaria de sair, ir embora daqui. É o meu sonho. Quando você fica assim [com uma deficiência], acabou.”

A HRW destaca que, embora a legislação determine que a institucionalização de crianças não deva durar mais do que 18 meses, salvo comprovada a necessidade, muitas crianças são colocadas por períodos mais extensos.

“Muitas crianças com deficiência perdem contato com suas famílias e permanecem segregadas em instituições durante toda a sua vida. Em uma instituição, por exemplo, todos os 51 residentes estavam lá desde que eram crianças. Vários tinham mais de 50 anos de idade.” Como disse um diretor de uma instituição em São Paulo: “Eles ficam até morrer”.

“Existe uma crença enraizada de que pelo menos algumas pessoas com deficiência precisam viver em instituições, mas isso simplesmente não é verdade. Trancar as pessoas com deficiência em instituições é uma das piores formas de exclusão e discriminação”, diz Carlos Ríos-Espinosa, autor do relatório e pesquisador sênior da divisão de direitos das pessoas com deficiência da HRW.

Eles ficam até morrer, o estudo – O relatório é baseado em pesquisa realizada nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e no Distrito Federal e entrevistas com mais de 170 pessoas, incluindo pessoas com deficiência, seus familiares, gestores de abrigos e outras instituições e autoridades governamentais.

O documento destaca que “nos termos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), ratificada pelo Brasil, os governos devem respeitar a dignidade inerente às pessoas com deficiência, reconhecendo-as como pessoas em igualdade de condições com as demais”.

Pontua ainda que “isso inclui garantir que pessoas com deficiência possam viver de forma independente na comunidade, e não segregadas e confinadas em instituições. Nos termos da convenção, os governos também devem evitar a discriminação e o abuso contra pessoas com deficiência e remover barreiras que impeçam sua plena inclusão na sociedade. Todas as crianças, incluindo crianças com deficiência, têm o direito de crescer com sua família. Nenhuma criança deve ser separada de seus pais em razão de uma deficiência ou de pobreza”.

A ONG afirma que, embora o Brasil adote uma legislação avançada para melhor proteger os direitos das pessoas com deficiência, é preciso fazer muito mais para implementá-la integralmente. Entre as recomendações, a HRW recomenda que o País adote um programa de desinstitucionalização para dar fim à segregação de pessoas com deficiência, priorizando que crianças possam ser criadas com suas famílias.

“O governo precisa garantir que as pessoas com deficiência desfrutem de direitos em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive escolhendo, quando adultos, onde e com quem morar”, diz o documento.

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