Música e arquitetura
Ouro Preto vira palco para festival diferente
Publicado
emEm sua segunda edição, após reverenciar palácios históricos do Rio de Janeiro, Belém, Petrópolis, São Luís, o Festival Interativo de Música e Arquitetura (FIMA) aporta em Ouro Preto no dia 21 de maio, domingo, com o nobre propósito de homenagear o Palácio dos Governadores e a Casa de Câmara e Cadeia, sede do Museu da Inconfidência – dois prédios que, com sua beleza, envolvem os visitantes no tempo e no espaço, resultado do talento de artistas, arquitetos e engenheiros. Para reverberar, na música, estes dois edifícios monumentais da cidade, o FIMA levará ao Museu da Inconfidência um quarteto de cordas formado pelos renomados músicos mineiros Rodrigo de Oliveira e Jovana Trifunovic (violinos), João Carlos Ferreira (viola), e Robson Fonseca (violoncelo). Os comentários ficarão à cargo de dois ilustres palestrantes: Alex Sandro Calheiros Moura, filósofo e diretor do Museu da Inconfidência; e Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, jornalista, escritor, curador de arte e gestor público – dirigiu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Com patrocínio do Instituto Cultural Vale por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, todas as apresentações do FIMA têm entrada gratuita.
As suntuosas construções localizadas nas colinas de Ouro Preto abrigam, em dueto harmonioso, fatos, elementos e conceitos seminais da História, da Arte e da Arquitetura. Outrora lar de influentes líderes desta cidade, o Palácio dos Governadores foi projetado pelo pai do “Aleijadinho”, o arquiteto português Manuel Francisco Lisboa. Uma construção robusta, concluída em 1746, que combina elementos de fortificação com um caráter civil e que hoje abriga o Museu de Mineralogia e a Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto. Já a sede do Museu da Inconfidência é uma magnífica edificação da arquitetura civil colonial, projetada pelo engenheiro José Fernandes Pinto Alpoim, em 1785, mesmo arquiteto do Paço Imperial do Rio de Janeiro. Uma obra monumental financiada por uma loteria real, construída com as mãos de prisioneiros e concluída em 1855.
No dia 21, no Museu da Inconfidência, o FIMA irá promover para público mineiro uma ponte com o compositor português Pedro António Avondano, com os austríacos Ignaz Pleyel e Joseph Haydn, e com o italiano Luigi Boccherini, cujas obras ecoam o tempo de construção, a história, a arte decorativa, a elegância e a sofisticação desses dois magníficos edifícios. Nomes que se encontram no catálogo Música colonial do Brasil, de Francisco Curt Lange, musicólogo que promoveu uma pesquisa abrangente e documentou a presença de obras destes e de outros compositores na região de Minas Gerais no período colonial brasileiro. Um registro importante que fornece um entendimento das práticas musicais da época e as interações entre as tradições musicais brasileiras e europeias, a ser explorado neste concerto.
O programa e seu contexto histórico
A abertura do concerto se fará com o Trio em Sib Maior, de Pedro António Avondano, compositor nascido em Lisboa, em 1714, e que trabalhou, a partir de 1762, como violinista da Orquestra da Real Câmara desta cidade, além de fazer uma carreira promissora como compositor e promotor musical. Nas décadas de 1760-70, a vida cultural da capital de Portugal despontou para o culto dos concertos públicos. Foi neste contexto que surgiu este Trio, obra que transportará o ouvinte para esse ambiente social e cultural trazido de Portugal para o Brasil no início da segunda metade do século XVIII, no mesmo período em que se realizavam os últimos acabamentos da construção do Palácio dos Governadores. Avondano foi um dos compositores mais influentes da Corte portuguesa, e que recebeu a Ordem de Cristo, em 1768, pela relevância das suas funções no seio da Irmandade de Santa Cecília. Esta associação religiosa também teve grande importância em Ouro Preto na promoção da música sacra e profana, contribuindo para a formação de músicos e para o desenvolvimento de um repertório regional de importantes compositores mineiros, como Francisco Gomes da Rocha, José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Ignácio Parreiras Neves entre outros.
Em seguida, o concerto apresenta a obra de um austríaco, discípulo de Joseph Haydn. Considerado um dos compositores mais prolíficos e populares de seu tempo, com mais de mil obras em seu catálogo, Ignaz Pleyel nos levará com o Allegro vibrante e enérgico do seu Quarteto de Cordas em Lá Maior, Op. 2, No.1, a imaginar a intensa e dinâmica Ouro Preto do final do século XVIII. Neste primeiro movimento, o diálogo animado entre os instrumentos do quarteto pode servir como uma metáfora para lembrar das discussões e negociações entre os governantes, administradores e outros personagens influentes que circulavam pelo Palácio dos Governadores na segunda metade do século XVIII. Da mesma forma, em seu Menuetto, de caráter gracioso, lúdico e dançante, as interações rítmicas e harmônicas remetem o público às trocas de ideias e à vida social e cultural diversa desta cidade. A obra foi composta na mesma década em que José Fernandes Pinto Alpoim fez o projeto da Casa de Câmara e Cadeia, que hoje abriga o Museu da Inconfidência, edifício que também reflete a riqueza cultural e artística de Villa-Rica.
Oito anos após Pleyel escrever este quarteto, seu professor Joseph Haydn compôs o Quarteto de Cordas em Ré Maior, Op. 64, No. 5, conhecido como A Cotovia, a próxima obra do programa. A peça, uma das obras-primas do período clássico, é parte de um conjunto de seis quartetos de cordas conhecidos como os Quartetos de Tost, dedicados a Johann Tost, um violinista e mecenas que trabalhou na orquestra do príncipe Esterházy, onde Haydn também atuava como mestre de capela. O Allegro moderato, com sua melodia lírica, evoca o canto da cotovia, enquanto o Adagio cantabile é um movimento lento e expressivo que contrasta emocionalmente com o primeiro. Já o Menuetto: Allegretto possui um caráter elegante e um Trio central com destaque para o violoncelo, e o Finale: Vivace é uma peça enérgica e virtuosística com escrita contrapontística brilhante. Juntos, esses movimentos criam uma obra equilibrada e emocionalmente rica, demonstrando toda a genialidade de Haydn.
Encerra-se essa conexão entre arquitetura, história e música em Ouro Preto com mais um compositor citado por Francisco Curt Lange em seu catálogo, Luigi Boccherini. Seu Quarteto nº 4 de Cordas em Si menor, Op. 58, No. 4, G. 245, apresenta dois movimentos contrastantes: o energético Allegro molto, com diálogos intensos e contrapontísticos entre os instrumentos, e o cativante Rondeau – Allegro, caracterizado por um tema principal que retorna várias vezes, intercalado com episódios contrastantes. Uma obra rica em expressão e emoção que ecoa toda a beleza destes dois edifícios, que assim como estes compositores, até hoje encantam a todos.