Quis o destino que a lembrança de 60 anos da instituição da ditadura militar em 1964 coincidisse com a celebração da paixão de Cristo. O Brasil é um país majoritariamente cristão. As preces desses milhões de brasileiros estão lembrando das ininterruptas torturas impostas a Jesus até que fosse pregado em uma cruz e ali executado.
O regime que se inaugurou há 60 anos se iniciou com perseguição atroz a todos que definiu como adversários. Milhares de servidores públicos, juízes, intelectuais, professores universitários, diplomatas e militares (pensam que não?). Foram afastados de suas funções e grande parte deles encerrados em prisões sem causas justificadas, prazos definidos ou direito de defesa. Políticos legitimamente eleitos perderam seus mandatos.
Todas as entidades de representação dos estudantes foram extintas e seus líderes foram perseguidos. Não foram poucos os relatos de torturas nas prisões.
A quase totalidade dos grandes órgãos de imprensa apoiou entusiasticamente o golpe militar. Suas manchetes falavam do suposto risco do fantasma do comunismo, que estaria a caminho.
Como não tardou a reação popular, intensificou-se a repressão contra manifestações de estudantes, trabalhadores, assim como sobre artistas e intelectuais.
Com a edição do Ato Institucional n° 5, no final de 1968, não restou mais resquícios de direitos democráticos e a repressão política se tornou ainda mais violenta.
São incontáveis os relatos de mortes, torturas, prisões, perseguições, cassações de mandatos políticos, perdas de cargos públicos, pessoas que tiveram de recorrer ao exílio, atos culturais proibidos, músicas censuradas.
Não é pequeno o número de denúncias de cemitérios clandestinos e formas diferenciadas de descarte de corpos de adversários do regime.
Foi um período em que se multiplicou também a quantidade de brasileiros que dedicaram as suas vidas para lutar contra a ditadura.
Quero lembrar de um deles pela singularidade da sua história e por ter acompanhado de perto parte dela.
Eduardo Collier Filho, pernambucano, foi estudar Direito em Salvador. A objetividade do seu discurso e a clareza como expunha as suas ideias o transformaram rapidamente em uma liderança que ia além da sua escola.
Duda era extremamente carismático e chamava a atenção por sua enorme estatura e por por seu jeito afável. Com os cabelos claros e encaracolados, não escapou ao apelido de “Anjo Barroco”. Como aqueles que pendiam nas paredes das naves das centenas de igrejas de Salvador.
Duda era também extremamente disciplinado. Em uma das reuniões da nossa base de Ação Popular, durante a greve de ocupação da Universidade, em 1968, surpreendeu por submeter se deveria aceitar um relacionamento proposto por uma liderança feminina, que todos tínhamos como linda. Mas, ele explicava, “ela era uma reformista”. Ou seja, uma adepta da linha política do “Partidão” (PCB), que considerávamos não revolucionária.
Em 1986, foi candidato a presidente da UEB, a União dos Estudantes da Bahia. Caminhamos juntos em praticamente todas as escolas da Universidade Católica e da Federal.
Nossa organização, a AP, não conseguiu eleger a nossa chapa. Mas, logo a seguir, vencemos a disputa para o Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal.
Não ficou muito tempo. Duda foi um dos estudantes expulsos da Universidade por participar do congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna. José Sérgio Gabrielli assumiu a Presidência e eu, a Vice-Presidência.
Era uma época de repressão particularmente violenta. O governo espalhava pelas paredes da cidade cartazes de estudantes desaparecidos com o título Procurados. Para nós, era claro que haviam sido presos.
De repente, uma das fotos tinha uma cruz riscada sobre a testa. Era uma forma de se divulgar que ele fora eliminado.
Terminei o meu curso de Administração Pública, minha primeira formação, e deixei de ter notícias de Duda, o que me preocupava bastante.
Como a maior parte dos militantes de AP, Duda fora para o PCdoB. A informação mais recente era que ele fora preso em uma batida em um local em que o Partido se reunia no Rio de Janeiro.
Mesmo tendo acompanhado todos aqueles anos de ditadura militar, o fim da história de Duda não podia ter me deixado mais chocado. Ao ler Memórias de uma Guerra Suja, vi o ex-delegado Cláudio Guerra relatar como se desfez de dez corpos de militantes assassinados depois de presos.
Levava-os para Cambahyba, no norte fluminense. Ali, eram incinerados no fornos de uma usina de açúcar de um produtor íntimo do regime militar. As cinzas eram misturadas ao vinhoto (resíduo da cana-de-açúcar), que é utilizado como adubo.
Eduardo Collier Filho, o “Anjo Barroco”, assim como cada uma daquelas vítimas da ditadura de extrema direita que se impôs ao Brasil há 60 anos, também merece hoje uma oração desta nação cristã.