Às vezes guardo um tema na gaveta para contar depois. Normalmente o esqueço. Volto a lembrar do assunto meses depois, quando escrevo algo parecido. É o caso da narrativa de hoje. De um tempo mais antigo, para chegar aonde estou – em lugar algum – precisei cursar o primário, admissão, ginasial, científico e duas faculdades. Conclui todos, mas o melhor foi ser cumprimentado por não retroceder.
Sem berço, mas com muita garra, consegui alcançar o maior dos sonhos: a formatura na escola da vida. Nos bancos das praças e nos vagões dos trens da Central do Brasil, descobri que a tabuada era muito mais importante do que a geometria, a trigonometria ou os catetos da hipotenusa.
Com ela, aprendi que tempo e sonhos sempre se somam aos objetivos. Dividi-los resulta naturalmente em retrocesso. O resultado da multiplicação é a realização. Tive numerosas oportunidades, mas deliberadamente abandonei os estudos dos supérfluos. Preferi estudar o inconsciente dos mitos e acabei descobrindo que, assim como os mentirosos, ninguém acredita neles, mesmo quando eles se apresentam como verdadeiros.
Nas caminhadas arenosas, conheci poetas familiarizados com a tragicomédia e tradutores do cotidiano bruto e cruel das grandes cidades. Seguidamente ouvia os absurdos do trovador Manhoso, mas até hoje não consegui entender a razão pela qual cortaram a língua do criado mudo.
Após meses de pesquisa, me informei sobre um tal céu existente na boca. Todavia, ainda não descobri se o pé da mesa forma bolha. Não quero saber quem pôs fogo no inferno, se pé de alface tem chulé, se o molho de chave é apimentado, tampouco se gambá usa perfume. Parece que envernizaram a barata, mas desconheço a autoria. Também não conheço quem pôs bateria no vagalume, muito menos quem pisou no pé do pato ou quem afiou o Machado de Assis.
O que posso adiantar é que estou bem perto de saber se a boca da noite usa dentadura e se tijolo é ou não rapadura. Usei de toda essa utopia poética somente para chegar em uma discussão interplanetária sobre a nacionalidade de Adão e Eva.
Apesar de desinteressante para quem não conviveu com o casal, o que me chamou a atenção foram as pessoas envolvidas e as comparações, as quais, em um mundo de indivíduos, é absolutamente sem sentido.
Mais uma vez, a conversa aparentemente desconexa ocorreu no Bar do Toba – sempre lá -, onde a máxima vigente é das mais simplórias: quem compara rouba identidade.
Véspera do primeiro turno da eleição presidencial, em uma das 17 mesas do boteco – ou seriam 22? – um alemão, um francês, um inglês e um brasileiro apreciavam a cópia mal ajambrada do quadro de Adão e Eva no Paraíso.
Garboso, o alemão pede para que os “amigos” olhem a perfeição dos corpos: “Ela, esbelta e espigada; ele, como o corpo atlético e os músculos perfilados. Com toda certeza são alemães”. De imediato, o francês contesta: “É evidente o erotismo que se desprende das figuras. Sabem que, em breve, chegará à tentação. Não tenho dúvida de que são franceses”. Depois de duas goladas na caipirosca, movendo negativamente a cabeça, o inglês do tipo lorde da Suprema Corte sapeca: “Que nada. Notem a serenidade dos seus rostos, a delicadeza da pose, a sobriedade do gesto. Só podem ser ingleses”.
Segundos de contemplação silenciosamente intelectualizada, o calibrado brasileiro declara: “Não concordo. Olhem bem. Eles não têm roupas, sapatos ou casa. Aparentemente estão na merda, pois só têm uma maçã para dividir”.
Mais alguns segundos de silêncio, e o gajo, certamente um lulista de carteirinha do ABC, definitivamente convence seus antagonistas: “Meus amigos, vejam que, apesar do miserê, o casal não protesta contra o presidente deles. Pelo visto, só pensam em sacanagem e, o que é pior, acreditam que estão no Paraíso. Querem apostar como são os patriotas que se camuflaram por três meses defronte dos quartéis do país?”.
Imaginam quem perdeu a aposta?!