Helena Katz
Espalhar no ar, com um sopro, o que vem da terra para cobrir os corpos. Primeiro, o pó de café, depois, a farinha branca, e por fim, açafrão. E os corpos vão se cobrindo da história de um certo Brasil, com o marrom que, talvez, possa vir do ciclo do café; com o branco que, talvez, possa remeter ao ciclo do açúcar; e com o dourado, que, talvez, possa ser do ciclo do ouro. Mas, quando se olha com mais atenção, percebe-se que é justamente o que vai cobrindo os bailarinos que os deixa nus e os leva a tentar recompor algo dessa história.
Para Que o Céu Não Caia, o trabalho mais recente de Lia Rodrigues com a sua companhia, em cartaz no Sesc Belenzinho, fala do outro, aquele que não se sabe ouvir, e nos mergulha no desconforto de precisar admitir não saber – a condição primeira para mudar algo.
Quando os bailarinos chegam bem perto de nós, criando uma situação de intimidade, uma quase impossibilidade se escancara. O rosto abre uma terceira dimensão na cena porque nela se faz relevo. Se oferece sem defesa, mas ambivalente: convida e interdita. Já o olhar, ele parece saber algo e, a partir desse algo, às vezes confronta, às vezes convida. No face a face, fica-se refém porque a situação não cabe na simetria. Ao aproximar o rosto de nós, cada bailarino fecha um circuito, cuja química tenta afofar o escuro onde se dá.
Com o filósofo Emmanuel Lévinas, a gente aprende que a experiência com o outro lembra a vulnerabilidade do encontro com a face porque também excede a possibilidade de ser descrito. É dessa natureza a aproximação das faces dos bailarinos. Por eles, nos chegam esses outros, sejam os craqueiros zumbis da favela da Maré ou os ianomâmis de Davi Kopenawa em A Queda do Céu, livro que é uma das muitas presenças convocadas em Para Que o Céu Não Caia. Mário de Andrade que levou Lia pela mão para o Brasil de Folia, sua criação estreada em 1996 e recriada em 1997, reaparece nas danças, sobretudo no Mateus matreiro de Francisco Thiago Cavalcanti.
Folia reaparece como que “explodida”. Porque agora, uma estrutura de ocupar e distribuir sustenta a composição. Os bailarinos vão ocupando o espaço e o público precisa se distribuir ao seu redor. Os passos que eles dançam seguem a mesma lógica: vão ocupando seus corpos, mas uma urgência os expele para o espaço, distribuindo-os como se o café, a farinha e o açafrão continuassem a ser soprados.
As vozes gritadas riscam em nós a sua mescla de ardor e aridez, desbaratinam o que se gostaria ordenado, espancam as palavras não ditas. As bocas abertas pulsam imagens implacáveis de dores.
O elenco, que estampa diversidade em todas as direções (tamanho, modos de fazer, cor, etc.), distribui a sua competência em cada inflexão. Os excessos estão afastados. Mérito de cada um e, sobretudo, do trabalho meticuloso de Amália Lima que, pela primeira vez, não dança e atua como assistente de criação e direção. Leonardo Nunes cresceu tanto, artisticamente, que seu corpo alargado de sabedorias, agora cintila.
Está escuro – É preciso agarrar com os olhos aquilo que os corpos põem no espaço. Porque o mundo não é dado, mas construído pelo nosso olhar. Porque nele está também esse outro a ser encontrado. Sendo o céu “aquilo que está acima de nós”, na língua ianomâmi, que arcos impedirão que desabe? Para que o céu não caia vai instalando um, que toma formas distintas, e em cada uma delas reafirma a força da combinação de todos os pós. É uma metáfora contundente do que é necessário fazer para que o céu não caia.