Trágico não fosse cômico o episódio de transferência do acervo de mais de 11 mil documentos de Lúcio Costa do Instituto Antônio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro, para a Casa de Arquitectura, em Portugal, é o retrato mais cruel do descaso dos governantes brasileiros de nossos dias com a cultura e com o povo. Quando se fala em direitos sociais, logo pensamos em saúde, educação e segurança. Normalmente, governos e governados esquecem que o direito à cultura também é garantido por lei. Saúde, educação e segurança sempre mereceram e até o fim dos tempos merecerão capítulos à parte. Embora desnecessário, pois todos dias vivemos as mazelas das escolas e hospitais públicos e da insegurança, um dia falaremos exclusivamente delas. Por ora, ficamos com o absurdo da omissão de um mandatário eleito com seus eleitores.
Alma de Brasília, o arquiteto e urbanista Lúcio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima Costa foi, respeitosamente, tão ou mais importante do que Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Israel Pinheiro, considerados criadores da cidade. Nada a contradizer. Ocorre que Lúcio Costa projetou a capital, foi a cabeça pensante da majestosa ideia de romper o cerradão. Entendo que mudar o endereço do acervo foi uma escolha da família. Entretanto, faz tempo o Brasil inteiro sabia das dificuldades enfrentadas pelo Instituto Antônio Carlos Jobim. As 11 mil peças são físicas, ou seja, não estavam escondidas em nuvem alguma. Portanto, se realmente houvesse interesse de alguém ou algum organismo público, a família poderia ter sido procurada antes do acerto com os portugueses.
Por razões óbvias, o Governo do Distrito Federal (GDF) tinha obrigação da iniciativa. Se não o fez foi por absoluta falta de interesse. E não adianta reagir depois da porta arrombada. Parece que os parentes não foram informados a tempo de que o GDF tinha condição e ferramentas digitais capazes de manter o acervo preservado e disponível ao público. Tenho certeza de que isso não aconteceu. E por que não tentaram? Porque é mais fácil dizer que a família não procurou o GDF. Esqueceram daquele velho e sábio ditado: “Se a montanha não vai até Maomé, vai Maomé à montanha”. Simples como dois e dois são quatro. Por isso, causa-me espécie alguém duvidar do radicalismo dos descendentes do mentor de Brasília.
Para qualquer ser humano com um mínimo de inteligência, é difícil acreditar que, caso tivessem sido procurados, eles (os familiares) insistissem com a opção de impor um oceano entre a história e os habitantes da cidade criada pelo precursor da arquitetura modernista e revolucionária no Brasil. Piada de mau gosto ou seja lá o que for, a única verdade revelada pelo governo local é que, a partir de agora, “quem quiser ver pessoalmente o acervo de Lúcio Costa precisa ir a Matosinhos, no interior de Portugal, próximo à cidade do Porto”.
Depois de 61 anos da criação de Brasília, teremos de aportar no Norte de Portugal para qualquer pesquisa mais didática acerca da trajetória e da genialidade do moço que, em 1957, venceu o Concurso Nacional para o Plano Piloto de Brasília, atual sede física da nova capital do Brasil. É pouco? Está na Casa de Arquitectura – e poderia estar por aqui – a vida pessoal e familiar de Lúcio Costa, incluindo correspondências, artigos de jornais, revistas, cartazes, fotografias, álbuns, postais, plantas, mapas, calendários, folhas de rascunhos, cartões de visita e apontamentos diversos. Diriam aqueles preocupados com o Museu Nacional da Bíblia que tudo isso é papel velho e sem relevância. Se nenhum desses documentos é importante para o Brasil e para Brasília, é para Portugal. Como não temos interesse em preservar nossa história, que ela fique em Matosinhos ad eternum.
Não tenho interesse em dissertar sobre o Memorial da Bíblia, mas, como contribuinte, sinto-me na obrigação de lamentar que a questionável obra – interessante para meia dúzia – custará R$ 26 milhões aos cofres do GDF. Ainda mais lamentável é acompanhar cobranças sem respostas do povo carente de cultura. Não deveria ser normal, mas natural que Brasília seja a mesma cidade cujo principal palco – o Teatro Nacional – está fechado desde janeiro de 2014. Sem contar os cinemas, teatros e centros culturais das cidades satélites, cujas obras se arrastam há décadas.
Não que sejam desimportantes, mas novos viadutos e túneis e velhos recapeamentos asfálticos e pinturas de vias rendem muitos mais votos do que um monte de papéis embolorados. Um dia ainda teremos governantes conscientes de que a cultura forma sábios. Um deles (o romancista francês André Maurois, pseudônimo de Emile Salomon Wilhelm Herzog) disse uma vez que cultura é o que fica depois de se esquecer tudo o que foi aprendido. Hoje, boa parte de nossos dirigentes aparenta ar professoral e variadas expertises. É só aparência. O problema é que, no Brasil, o diploma, desejo da maioria dos pais, transformou-se em inimigo mortal da cultura.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978