Os sonhos e as esperanças se desmancham no ar quando estamos apenas vencendo os primeiros 30 dias de 2025, promessa de projeção do ano que passou. Se parco é o inventário do que temos por comemorar, extensa é a pauta do que devemos temer, habitantes de nação dependente, de uma dependência geopolítica e ideológica inserida na periferia do capitalismo. Somos uma província no Sul Global para onde foram designados os subdesenvolvidos de ontem, após a repaginação do mundo determinada pelo fim da Guerra Fria, proclamando a vitória da globalização e dos EUA.
Não há como, neste novo mundo que já nasce velho, ignorar nossa brasileiríssima tragédia histórico-geográfica, mas diante dela nos incumbe, como povo, sociedade e Estado, saber enfrentar os desafios que já nos chegam correndo com botas de sete léguas. Ou deciframos a esfinge ou seremos devorados.
Para bem compreender os tempos presentes, construção de tempos passados (compreender para nele intervir), o primeiro passo é a análise do cenário internacional, que nos lembra os piores momentos do século passado, o qual, entre outras catástrofes humanitárias, nos legou duas guerras mundiais. Mais uma lição da História: é mediante guerras de toda ordem que se desenvolvem e se resolvem as disputas de hegemonia, e é este o conflito de nossos dias, anunciante de embates ainda mais graves no amanhã que podemos divisar sem o recurso das lentes do tempo.
Se “lá fora” são maus os presságios, na província continental os tempos de hoje cobram engenho e arte. E, sem dúvida, alguma audácia e coragem, predicado dos vencedores.
O mundo, sob a égide do capitalismo, parece haver optado pela regressão, e nela investe com dedicação suicida. Faz décadas, a contar primacialmente do fim da Guerra Fria, tornada desnecessária com o suicídio da URSS e o fracasso das experiências de capitalismo de Estado do Leste europeu, a classe trabalhadora, onde a ideologia neoliberal se fez política de Estado – ou seja, praticamente em todo o mundo – vem sofrendo seguidas derrotas nos planos econômico, social, político e cultural, acumulando recuos políticos e revezes estratégicos que não podem ser reduzidas, tão-só, às consequências anunciadas pelas novas relações de produção, mais e mais condicionadas pela preeminência do capital sobre o trabalho.
Fruto das contradições inerentes ao desenvolvimento do capitalismo financeiro monopolista, soma-se (e aí não se trata de crise) o acirramento das chamadas guerras comerciais, o aumento do número de confrontos militares, o expansionismo terrorista do sionismo, a naturalização do genocídio, a falência dos organismos internacionais, a começar pelo fracasso da ONU. Tudo em meio a uma crise ambiental cumulativa que parece sem solução. Desta tragédia já somos testemunha e vítima, e sabemos aonde pode levar o negacionismo.
Este é o nosso mundo de complexa fragilidade física e política que mais e mais se assemelha à casca de noz a que se referia Stephen Hawking. Desta nave somos passageiros sem acesso à cabine de comando. Mas tudo o que nela ocorre nos diz respeito diretamente, pois intervém diretamente em nosso destino, como planeta e humanidade.
Os cordéis da globalização – fenômeno econômico, político, militar e ideológico – estão sob a égide do maior concerto de poder jamais conhecido desde a longa era romana, que a paranoia do 3º Reich intentou refazer, ao preço conhecido. Os EUA caminham para o apogeu de seu declínio, em plena crise política, social e ética, que se vem acentuando nas últimas décadas, ao tempo em que acirra a disputa pela recuperação da hegemonia global, o que pode nos levar à terceira guerra mundial. Dela, se não sabemos qual será o primeiro passo, e não sabemos mesmo se esse primeiro passo já não terá sido dado, temos certo como será o último capítulo, que talvez ninguém possa registrar.
É sob tais condicionantes que forcejamos por construir nossa história, indecisos ainda sobre o que somos e o que queremos ser, carentes, ainda, de um projeto de país.
Se razões objetivas nos dizem que conseguimos em 2022, mesmo a duras penas, deter as maiores ameaças conhecidas pelo processo político-social desde 1964 – a possibilidade de reeleição do capitão meliante –, não é racional supor que esmagamos a peçonha. Aos candidatos a doutor Pangloss a realidade traz à tona a composição do Congresso eleito com Lula, as maquinações de dezembro de 2022, a intentona de 8 de janeiro de 2023 e as eleições de 2024, bem como as resistências militares, as pressões e chantagens do grande capital, e um cenário internacional desconfortável sob todos os aspectos…. enfim, o concerto de adversidades desafiando um governo impedido de afirmar-se.
A consagração de Donald Trump, um dado a mais no entrecho, é inquestionável testemunho, agora reiterado, da identificação da sociedade estadunidense com o discurso e o programa neofascista, desenvolvido em plano internacional. Criminoso condenado pelo Tribunal de Nova York, denunciado por fraude e conspiração, mitômano contumaz, o republicano retornará no próximo dia 20 à presidência dos EUA, um país e uma sociedade visceralmente beligerantes, e assim assumirá o comando da maior força militar jamais conhecida, prometendo a exasperação da velha política do Big Stick, que foi e é a essência do imperialismo norte-americano. Sua eleição, na voragem de votação consagradora, não deve ser vista como raio em céu azul. Também não se trata, o presidente reeleito, de um estranho no ninho do establishment. Trump é personagem fortemente identificado com o que se costuma chamar de americano médio. Os reais valores americanos estão em seu discurso, que por isso mesmo foi referendado.
De igual modo e respeitadas as distinções, a assunção de Jair Bolsonaro como líder nacional, e presidente quase reeleito, não deve ser vista como “um ponto fora da curva”, pois reflete a conquista das grandes massas brasileiras pelo discurso da extrema-direita, em níveis jamais suspeitados entre nós, seja durante o Estado Novo, seja durante o apogeu internacional do nazi-fascismo e do integralismo, seja durante o mandarinato dos generais que em 1º de abril de 1964 assumiram diretamente o poder que sempre controlaram.
O esboço de panorama nos lembra os idos do século passado, com a avalanche neofascista se espalhando pela Europa e o resto do mundo. Se as similitudes não são boas, desanimadoras são as dessemelhanças, pois o mundo que seria engolfado pelo nazi-fascismo vivia naquela altura os desdobramentos da Revolução de 1917, a politização das massas, a emergência do sindicalismo e das forças proletárias, a progressão das ideias e dos movimentos sociais e políticos, o crescimento dos partidos comunistas e de esquerda de um modo geral – um mundo de avanços que se revitalizava e crescia na resistência ao nazi-fascismo. O fim da guerra, com a derrota do Eixo, anunciava a vitória da democracia e a retomada dos sonhos, alimentando as mais audaciosas utopias.
A confrontação daqueles tempos com o mundo de hoje revela o recesso da resistência revolucionária, a vitória ideológica e política do neoliberalismo, o trânsito da social-democracia para a direita, do trabalhismo para o conservadorismo. Na Inglaterra, o trabalhismo, outrora liderado pela esquerda conduzida por Clement Attlee e Michael Foot, salta para a direita ou centro-direita de Keir Starmer, e na Alemanha o rotundo fracasso de Olaf Scholz e dos socialdemocratas do SPD atapeta a estrada por onde avança o nazismo do AFD (Alemanha para os Alemães), o que, com a ascensão da ultradireita de Giorgia Meloni na Itália, conforma a decadência europeia e a renúncia histórica à expectativa de um projeto alternativo ao capitalismo desenganado.
O fascismo parece avançar sem encontrar resistência à altura.
Assim chega ao fim o ciclo das democracias liberais e a promessa de avanços políticos. Encerra-se também a experiência socialdemocrata, tornada desnecessária desde o colapso soviético; sobrevive na Escandinávia como enclave de bem-estar social no capitalismo globalizado.
Quando nos é dado celebrar os 40 anos do fim da ditadura instaurada em 1º de abril 1964 – sem nos havermos libertado da preeminência da caserna sobre a vida civil –, registramos dois anos da intentona de 8 de janeiro 2023, um desdobramento inevitável de 2018, por seu turno uma das crias do golpe parlamentar de 2016. A “Nova República”, anunciada com a eleição de Tancredo Neves (frustrada na posse de José Sarney), terminara melancolicamente com a eleição de Jair Bolsonaro. Momentaneamente contidapelas eleições de 2022, a peçonha chega a 2025 ainda muito forte, política e eleitoralmente.
Em todos os planos da vida institucional se estampa a persistente hegemonia da aliança direita-extrema direita.
O Brasil, na sua tragédia política que parece não ter fim, segue a trilha traçada por um mundo historicamente regredido, entusiasmado pela regressão, a modernidade do atraso, a vitória do passado que parecia morto, expulsando de nossos tempos as expectativas de um futuro melhor.
Este é o mundo do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, e essas são suas circunstâncias. Um processo político preso à linearidade, um processo social sem forças para alterar a ordem, que evita saltos, caudatário do passado que sobrevive no presente, impedindo o parto do futuro, eterna promessa que não se cumpre.
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Roberto Amaral, ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Lula, ex-presidente do PSB