Minha falecida tia dizia que sacanagem todo dia é garantia de saúde e de alegria. Só fui entender a máxima verborrágica da dulcíssima senhora quando, escandalizado, boquiaberto e enojado, li que um vereador bolsonarista de São Paulo capital havia proposto uma multa equivalente a R$ 17,6 mil para quem doar alimento a um morador de rua da cidade sem licença. Que me perdoem os seres irracionais, mas é pior do que Judas um ser racional usar de suas prerrogativas parlamentares para ameaçar com tal aberração quem tenta fazer o que os diversos níveis de governo, incluindo a Prefeitura paulistana, não faz.
Matar a fome do semelhante é mais do que um ato de amor ao próximo. É a demonstração mais óbvia de que no peito desses abnegados homens e mulheres bate um coração e não uma máquina destiladora de ódio. Autor da maquiavélica e encomendada proposta, o vereador Rubinho Nunes (União Brasil) é o mesmo que, no ano passado, articulou, sem sucesso, a instalação de uma CPI para investigar o padre Júlio Lancelotti, responsável pela Pastoral do Povo de Rua da Igreja Católica. Antes do sacerdote, o tal vereador também tentou investigar as ONGs que atuam na Cracolândia do centro de São Paulo. A insistência de Rubinho Nunes em evitar que os pobres comam é algo digno das bestas feras.
Em lugar de projetos para conter a sanha dos traficantes que abastecem os “moradores” da Cracolândia ou dos ladrões que atuam na capital, o intolerante, maldoso e corrosivo vereador se utiliza de seus podres poderes para espezinhar e perseguir quem faz o bem. Quer vê-los no inferno. O recuo e o pedido de desculpas do parlamentar pela bestialidade apresentada à Câmara Municipal não o exime de críticas, muito menos do desejo de que ele, quando subir ao céu, seja recebido pelo cramulhão. É o que merece todos aqueles que se colocam contra os verdadeiros patriotas. Deixar que um ser humano agonize de fome é crime contra a vida.
Como disse o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, impedir alguém de alimentar o irmão físico ou espiritual é “vilania pior do que desumanidade”. O gesto e a narrativa do vereador em nada difere dos discursos proferidos pelos parceiros políticos nas demais câmaras municipais, nas assembleias legislativas e no Congresso Nacional. Às escondidas, a ordem dada pelo mito dos horrores é deixar negros e pobres se exaurirem como pessoas. O deputado goiano Gustavo Gayer (PL), que comparou os nordestinos com galinhas, é um dos maiores exemplos da negação dos pobres pela elite. A perseguição implacável dos seguidores do nacionalismo de domínio parece não ter fim.
Após mais de 700 mil mortes da pandemia de Covid-19 sempre negada, o que mais eles esperam? A podridão absoluta? Talvez a extinção de todos aqueles que atrapalham a correria extremista pelo fim do Brasil das massas. Na impossibilidade da pulverização do povão, o desejo deles está voltado para o retorno da escravidão, período em que a minoria mandava e a maioria obedecia e, caso não pagasse o “dízimo”, era chicoteada, assassinada e jogada aos abutres. Eles querem, mas jamais voltarão à Idade da Pedra sem combinar com os russos. E, pelo andar da carruagem, os russos estão até aqui de mágoa com “patriotas” de meia tigela. Aliás, nem de meia.
Representados por lideranças desprovidas de qualquer cultura social, a patriotada do golpe adorar cobrar legalismo, mas muitos dos seus são pegos prevaricando, aplicando golpes, extorquindo fieis, traindo, ameaçando cônjuges, deixando de pagar pensão alimentícia a filhos menores, estuprando vulneráveis ou “irmãs”, armazenando vídeos de pornografia infantil e matando a pedido de facções criminosas como forma de proteção futura. Tudo em nome de Jesus. Por todas essas razões, sou obrigado a acompanhar, em parte, a conclusão de um jornalista assumidamente contrário ao pensamento da massa. Segundo ele, o Brasil está emburrecendo, mais ignorante, mais estúpido, consequentemente, se transformando em país de asno. Ele só não disse onde os asnos pastam. E precisar dizer? Perguntem ao vereador Rubinho Nunes. Os que têm um mínimo de inteligência sabem onde todos estão.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978