Os juízes são homens, não são anjos. Ouvi essa frase à exaustão durante minha longa passagem pelos gabinetes empoderados do Judiciário. Às vezes a entendia como justificativa antecipada para eventual erro em determinado julgamento. Era exatamente isso. Sejam eles de primeira, segunda ou terceira instância, os magistrados têm o dever profissional de acertar sempre. No entanto, como não são anjos, vez por outra falham. E nem sempre corrigem. É preciso que pares de esferas superiores reparem erros de outrem. O problema é que alguns desses lapsos são capazes de enterrar reputações e até pessoas. Nenhuma cobrança a um recente ex-juiz federal e ex-ministro da Justiça, acusado e julgado culpado por condenar extemporaneamente um ex-presidente da República. Ele jura inocência, mas difícil encontrar argumentos contra fatos concretos. Normalmente um escultor de ruínas, o tempo nos mostrará quem tinha razão.
Como dizia pelo menos duas vezes por semana o ministro aposentado Carlos Velloso, um antigo e querido chefe, se os homens fossem governados por anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos. Nada mais atual para algo proferido no fim do século XVIII. Desprovidos do senso democrático, despreparados política e administrativamente e deslumbrados pelo poder, certos agentes, no entanto, insistem em desconsiderar a máxima de James Madison JR, quarto presidente dos Estados Unidos e um dos fundadores da democracia norte-americana. Nada pessoal, mas é o caso do atual presidente brasileiro, que, embora ainda não seja considerado réu, responde a cinco inquéritos na Justiça, entre eles o das fake news, um que investiga irregularidades na negociação da vacina Covaxin e outro sobre interferência políica na Polícia Federal.
É pouco? Para a Justiça é suficiente. Por isso, antes de serem contestadas e recebidas com deboche, as decisões de Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, ministros do Supremo Tribunal Federal, tinham de ser respondidas com detalhes, de modo a evitar que o brasileiro com um mínimo de inteligência tivesse certeza da veracidade da tese de botequim tornada pública pelo falecido dramaturgo, poeta e jornalista Millôr Fernandes, para quem “Errar é humano. Botar a culpa nos outros também”. Ou seja, se defender atacando é próprio dos fracos, que preferem acusar os acontecimentos a reconhecer seus erros. Em síntese, o pior dos erros é acertar sozinho contra muita gente. É exatamente o que vivemos no Brasil de nossos dias. O presidente da República não tem discurso, ideias, propostas, tino político ou vontade de acertar. Mesmo assim, é julgado por alguns como o melhor que já tivemos. Na verdade, por poucos.
Esse povo esquece que o mundo não nos julga pelo que somos, mas pelo que parecemos ser. O projeto presidencial da vez é novamente usar a rampa do Palácio do Planalto para uma iniciativa pirotécnica, na verdade circense. Com o objetivo claro de constranger os ministros do STF, Bolsonaro está convocando auxiliares para seguirem a pé até o Senado Federal, onde serão (?) entregues os pedidos de impeachment dos dois supostos algozes. Ele sabe, mas finge não saber que, ao contrário dos cerca de 120 requerimentos que hibernam na mesa do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), seu recurso é inócuo, na medida em que magistrados não podem ser defenestrados por conta de decisões proferidas, mas apenas em casos de crimes de responsabilidade.
Quanto ao governante que não governa, o Brasil e os brasileiros cuidarão dele. Já se sabe que, na argumentação a ser apresentada por Jair Bolsonaro, não há qualquer casualidade ou fato objetivo. Portanto, a gaveta será o fim da queixa. seu fim. Novamente sou obrigado a recorrer a um bordão dos bastidores do Judiciário: “Quando violadas, as leis não gritam. Os que gritam normalmente são os que devem”. Parafraseando um ditado popular atualizado pela valente senadora Simone Tebet (MDB-MS), pau que dá em Chico, dá em Francisco. Em postagem recente, ela lembra que “Quem pede para bater no ‘Chico’, que mora no inciso II, artigo 52 da Constituição Federal, se esquece de que o ‘Francisco’ habita o inciso I do mesmo endereço”.
O referido artigo fala das competências do Senado Federal, que, como está explicado, não pode ser utilizado contra Moraes ou contra Barroso. Sua lembrança configura somente a nova loucura do dia, após 24 horas de silêncio forçado. Além de um delírio oportunista, é mais uma cortina de fumaça para tentar em cobrir sua falta de limites constitucionais. Os ministros do STF realmente não são anjos, mas estão fazendo o que podem para que o Brasil fique longe dos diabinhos encastelados ou fantasiados de caçadores de comunistas. Um dos pilares do capitão de barro já está na masmorra de Bangu 8. Quem será o próximo?
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978