A crise
Paulistano faz longas filas por comida de graça
Publicado
emDezenas de pessoas se aglomeram em uma fila que dobra o quarteirão no centro de São Paulo. Em meio à pandemia do novo coronavírus, o distanciamento social é desrespeitado e muitos não usam máscara.
São moradores de rua, entregadores e pessoas que trabalham na região que aguardam até por mais de uma hora pelo combustível que lhes garantirá energia para o resto do dia: um prato de comida.
A BBC News Brasil ouviu pessoas que recebem e distribuem essas doações para saber qual o impacto da pandemia do novo coronavírus no acesso da população mais pobre à comida na cidade mais rica do hemisfério sul.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 10 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar grave. A pesquisa, que se refere aos anos de 2017 e 2018, aponta ainda que o total de brasileiros que passam fome cresceu, segundo o órgão, em 3 milhões de pessoas em cinco anos.
‘Não é só o pessoal de rua’
Todas as segundas, o padre José Mario Ribeiro sai da Paróquia Nossa Senhora da Conceição (Tatuapé), na zona leste da capital, ao lado de outros 12 voluntários, para entregar 1400 marmitex na praça da Sé, no centro. Segundo ele, hoje o número de refeições é sete vezes maior que no início do ano.
Ele conta que percebeu não só um aumento no número de pessoas em busca das quentinhas, mas também a chegada de um público diferente.
“Não é mais só o pessoal de rua. A gente está percebendo que muitas pessoas passam para buscar por estarem desempregadas e estarem com fome. Ontem mesmo um senhor me disse que trabalhou o dia inteiro sem comer e que estava nos esperando para pegar uma marmita que seria a única refeição dele”, disse o padre em entrevista à BBC News Brasil.
Pessoas que distribuem alimentos na capital paulista relatam mudança, após pandemia, no perfil daqueles que recebem as doações
O padre conta que se houvesse mais doações e voluntários para produzir as refeições, acabariam todas. Ele contou que há pessoas que pedem uma marmita extra para levar para a família em casa.
“Antes da pandemia, a gente doava cerca de 400 a 500 marmitas. Se a gente fizer 2 mil hoje, acaba tudo”, afirmou.
Mas para essas entregas chegarem às mãos de quem passa fome, é necessária uma corrente. Ela vai desde as doações de alimentos, como arroz e feijão, até a produção numa cozinha industrial e o transporte — feito no caminhão de um feirante voluntário, que também doa frutas e legumes.
Para que ela cresça, o padre faz um apelo.
“A gente precisa muito de arroz, feijão e embalagens. Duas casas de carne fazem doações para a gente. Arroz e feijão a gente pede na paróquia. Quem puder ajudar, pode levar na paróquia ou ligar — (11) 2093-1920 — para fazer doações. Vale muito a pena ajudar e acho que na nossa sociedade recebemos mais do que doamos”, disse.
A paróquia ainda entrega 300 refeições às quartas-feiras em outros três pontos da cidade.
Mais de 3 mil refeições por dia
A 300 metros da praça da Sé, onde o grupo liderado pelo padre José Mario faz doações às segundas, padres franciscanos e voluntários distribuem todos os dias na hora do almoço 1200 refeições e outras 1200 no jantar no largo São Francisco. Além de outras 300 marmitex no Glicério e 400 refeições no chamado Chá do Padre.
O frei João Paulo Gabriel, da Tenda Franciscana, disse que o início da pandemia, em março, marcou ó começo de uma explosão de pessoas em busca de comida no centro de São Paulo.
“Quando decretaram a pandemia, as pessoas pararam de fazer doações na região e o povo que já conhecia o nosso serviço foi nos procurar na rua Riachuelo, onde funciona o Chá do Padre. Mas a gente não estava preparado. Não tinha cozinha, voluntários, mas conseguimos a liberação para montar uma tenda a céu aberto”, contou o frei.
O grupo distribuía cerca de 300 refeições por dia no local. Com a alta da procura e uma grande visibilidade depois da fila ser exibida em reportagens na TV, o grupo atraiu voluntários e doadores dispostos a ajudar na compra de alimentos.
Depois do início da pandemia, os voluntários perceberam a aproximação de pessoas com um perfil diferente.
“A gente tinha um público 100% de população de rua, mas ele foi mudando. Hoje há muitas pessoas que vivem em ocupações, gente que tem casa e não tem condição de comprar uma refeição. São pessoas que faziam bico e não tem mais, que não tem mais carteira assinada. Tem pessoas desesperadas imaginando como vão sobreviver quando terminar o auxílio emergencial”, afirmou o Frei João.
Ele conta que hoje a fila diminuiu um pouco porque muitas pessoas voltaram a fazer doações na região por avaliarem que o risco de contaminação pelo novo coronavírus diminuiu. “Aumentaram as bocas de rango, como a gente diz, e descentralizou a distribuição”, disse.
Porém, os franciscanos dizem que houve uma queda considerável no número de voluntários, pois a maior parte voltou a trabalhar, e faltam alimentos não perecíveis para montar cestas básicas.
Doações podem ser feitas no site www.doesefras.org.br ou diretamente no local onde funciona o Chá do Padre, na rua Riachuelo, 268.
O sustento da família
O grupo Mãos de Maria chega nesta sexta-feira (16/10), Dia Mundial da Alimentação, à marca de um milhão de refeições distribuídas na favela de Paraisópolis, a maior de São Paulo. O grupo começou a distribuir marmitas a partir do dia 23 de março, logo no início da pandemia. A intenção, diz a fundadora do Mãos de Maria Brasil, Elizandra Cerqueira, era ajudar principalmente as pessoas que perderam o emprego na pandemia, principalmente as mulheres.
“Temos a missão de gerar renda na favela através da culinária e combater a violência contra a mulher. Nosso objetivo inicial seria produzir 2 mil marmitas por dia, mas a pandemia virou algo maior do que prevíamos e chegamos a entregar 10 mil marmitas por dia, numa mobilização com o G10 das favelas e empresas do setor privado”, afirmou.
Desempregado há um ano, o porteiro Enéias de Camargo Nogueira, de 53 anos, é uma das pessoas que recebem diariamente as marmitas produzidas pelo Mãos de Maria.
“Já pego há três meses e é isso que me ajuda a me manter nesses tempos”, afirmou.
Na mesma fila, Edmilson da Silva faz bicos em construção civil, mas também está desempregado. Ele pega três marmitas para dividir com a mãe, o pai e a irmã.
“Só o meu pai está trabalhando. E essa é uma grande ajuda, já que a gente está sem renda no momento”, afirmou.
A fundadora do Mãos de Maria aponta que as refeições são essenciais para melhorar a imunidade da população.
“Quando a pessoa fica sem alimento, ela fica muito mais vulnerável a doenças e também ao vírus, com a imunidade baixa. Acolhemos nessa crise todos que passam fome”, afirmou.
Ela afirmou que a partir desta sexta o mesmo trabalho também será feitos nos Estados do Pará, Pernambuco e no Distrito Federal.
Todos os dias, os chamados “presidentes de rua” retiram marmitas na cozinha central e levam para as famílias que acompanham. Cada um deles atende 50 residências.
O trabalho não impede a formação de filas na frente do local onde as marmitas são produzidas. Segundo Elizandra Cerqueira, as primeiras pessoas aparecem às 10h, mas as primeiras refeições são entregues apenas ao meio-dia.
“As pessoas entram em desespero por medo não conseguir comida. Mesmo a gente explicando, elas querem ficar ali e esperar mais de duas horas para garantir que vão ter o que comer”, disse a fundadora do programa.
Quem quiser, pode fazer doações através do site do G10 das favelas: www.g10favelas.org
Idosos recebem comida em casa
Mas nem todos têm condições de sair de casa para buscar comida. É o caso da Frida Braunstein Taranto, de 95 anos, uma das 700 pessoas atendidas diariamente pelo grupo beneficente israelita Ten Yad.
O filho caçula de Taranto morava com ela, mas foi vítima da covid-19 e morreu em julho, aos 29 anos. Viúva há 15 anos, ela vive sozinha e não sabe como seria caso tivesse de cozinhar.
“A comida que mandam é muito saborosa e saudável. Recebo em casa desde o começo da pandemia. Vem uma quantidade adequada para o almoço e um pote de sopa para o jantar, fora a sobremesa. Não tem como reclamar”, afirmou.
Às sextas, conta Taranto, o Ten Yad entrega não só a refeição do dia, mas também a de sábado e domingo — dias em que não há distribuição — congeladas.
O rabino Berel Weitman, vice diretor-executivo da Ten Yad, disse à BBC News Brasil que todos os dias dezenas de Kombis e carros de passeio fazem filas para pegar marmitas e entregá-las voluntariamente em todas as regiões da cidade.
“Nosso trabalho foi fundado em 1992 com um refeitório humilde, onde idosos e pessoas carentes almoçavam. Em 1994, passamos a levar a domicílio para pessoas acamadas e com dificuldades locomoção. Um trabalho que chamamos de “Meals on Wheels”, ou Refeições Sobre Rodas”, conta o rabino.
Em 2004, iniciou uma parceria com a prefeitura para atender idosos e pessoas com vulneráveis cadastradas no serviço social municipal. Desde o início da pandemia, o serviço foi adaptado e também passou a distribuir cestas básicas e kits de higiene pessoal.
Além do serviço, hoje já são distribuídas 100 refeições para os mais jovens no refeitório localizado no Bom Retiro. O grupo também administra as 1500 refeições oferecidas no Bom Prato do Glicério por R$ 1.
“Hoje estamos preocupados, com uma demanda crescente por comida. São mais e mais famílias pedindo, principalmente os idosos que não conseguem cozinhar. E precisamos de mais pessoas sagradas para nos ajudar”, afirmou o rabino Berel Weitman.
Quem tiver interesse em fazer doações, pode entrar em contato com o grupo pelo site (www.tenyad.org.br), fazer doações de alimentos, roupas para o bazar, se tornar sócio mensal ou até mesmo fazer doações pela nota fiscal paulista.
“Quero deixar uma frase da sabedoria judaica. A gente pensa que está ajudando um necessitado em situações como essa. Mas o necessitado faz muito mais pelo doador. Esse é um dos aprendizado que tivemos durante a pandemia e que não podemos perder: a solidariedade”.