Notibras

Pauta do Brasil são o clima, o cangaço e os jagunços

Eu queria escrever sobre a conferência do clima em Glasgow, sobre as pessoas que estão ali, de fato, para tentar deter a destruição da vida, sobre a presença e peso político inéditos dos povos indígenas, sobre a força da fala da jovem indígena brasileira Txai Suruí ao abrir o evento para o mundo. Mas sou obrigada a lembrar que, no mesmo domingo, 31 de outubro, em que se iniciou a COP-26 (sem a presença de Bolsonaro, que preferiu hostilizar jornalistas brasileiros, agredidos por seguranças, em Roma) 26 pessoas foram assassinadas em Varginha, Minas Gerais, por agentes do Estado. A operação conjunta da Polícia Rodoviária Federal, Polícia Militar de Minas Gerais e Bope (Batalhão de Operações Especiais) matou em um suposto confronto – nenhum dos policiais foi ferido – suspeitos de planejar um roubo ao Banco do Brasil na cidade.

Sem a menor preocupação com a legitimidade da operação, que agora será investigada pelo Ministério Público e pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas, o governador Romeu Zema aplaudiu, em estilo faroeste: “Em Minas Gerais, a criminalidade não tem vez”. Foi superado de longe pela comemoração dos filhos de Bolsonaro: “Só vagabundos reclamarão”, postou o 03.

A imprensa entrou no jogo e destacou o “armamento de guerra” do “novo cangaço” (curiosamente não utilizado no suposto confronto) e à medida que os corpos iam sendo identificados, passou a divulgar os antecedentes criminais dos “suspeitos”, endossando, sem pudor, a velha máxima do “bandido bom é bandido morto”. No Brasil, o valor da lei – e da vida que deveria ser protegida por ela – continua a ser relativo.

A verdade é que temos mais jagunços do que cangaceiros, uniformizados ou não. Por isso ainda vemos os jovens pretos e pobres exterminados sob holofotes e discutimos se há ou não um genocídio em um país que só pela violência direta matou pelo menos 182 indígenas em 2020 (sem falar nos 1.229 mortos pela pandemia, agravada pelas políticas criminosas do governo federal). Um crescimento de 60% em relação ao ano passado e o maior número de vítimas indígenas de violência em 25 anos.

Do outro lado, com as armas na mão, estão os “bandidos” protegidos pelos mesmos políticos que dizem combater o crime – milicianos, garimpeiros, pistoleiros, grileiros, madeireiros. Não vamos esquecer que o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi acusado judicialmente de se aliar a contrabandistas de madeira, os milicianos receberam medalhas da família Bolsonaro, enquanto os grileiros são premiados com títulos de terra e os garimpeiros exaltados pelo presidente da República. Ontem, um assentamento foi atacado por pistoleiros em Nova Ipixuna, no Pará, mesmo município onde ocorreu o emblemático assassinato de um casal de agricultores em 2011.

Nunca esqueço o que disse um agricultor jurado de morte por madeireiros ao repórter Ciro Barros em abril de 2019: “O governo não diz que quer combater o crime organizado? Vá lá no assentamento e combata”, pediu, isso antes ainda de facções criminosas e traficantes de drogas encontrarem abrigo e renda em garimpos em territórios Munduruku e Yanomami.

Dados de um estudo do Fórum Nacional de Segurança Pública, Cartografias da Violência na Região Amazônica, publicados pela revista piauí mostram que a taxa de violência letal nas zonas rurais/floresta na região amazônica apresentou crescimento de 9,2% entre 2018 e 2020, enquanto houve queda de 6,1% no restante dos municípios rurais brasileiros.

É com essa violência tão enraizada na cultura brasileira, feita de crimes apadrinhados contra vidas tidas como descartáveis, que não podemos compactuar – nem esquecer. Também é por causa dessa política que mais de 1,5 milhão de árvores são derrubadas por dia na Amazônia – e aí não adianta o governo assinar acordos em Glasgow que não pretende cumprir. Como disse Txai Suruí, que teve a mãe ameaçada de morte e o pai perseguido pelo governo Bolsonaro, em seu discurso na COP: “Enquanto vocês estão fechando os olhos para a realidade, o guardião da floresta Ari Uru-Eu-Wau-Wau, meu amigo de infância, foi assassinado por proteger a natureza. Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar no centro das decisões que acontecem aqui. Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis, vamos acabar com a poluição das palavras vazias e vamos lutar por um futuro e um presente habitáveis. Nós temos ideias para adiar o fim do mundo. É necessário sempre acreditar que o sonho é possível. Que a nossa utopia seja um futuro na Terra.” Que assim seja, Txai.

Sair da versão mobile