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Pazuello mostra que gota d’água já transbordou

Como dizia a personagem de antigo folhetim global, cada mergulho representa um flash. Na verdade, cada depoimento significa uma submersão intempestiva na escuridão do abismo das mentiras e das invencionices, termo cunhado pelo eterno prefeito Odorico Paraguaçu para esconder suas incorreções. É esse o dia a dia da CPI da Covid. Criada para investigar ações e omissões da administração Bolsonaro no controle da pandemia, a comissão, sem nenhuma surpresa, se transformou em um delivery de denúncias claras ou veladas contra o presidente da República. No calendário do Planalto, as últimas semanas têm sido de sobressaltos coletivos. De olho na transmissão da TV Senado, suam em bicas o mandatário, ministros, assessores, secretários e até contínuos e ascensoristas, os que mais sofrem com o mau humor palaciano. Nessa quarta-feira (19), o depoimento do ex-ministro Eduardo Pazuello elevou à potência mais alta a hipérbole palaciana.

Todos suaram montanhas de água, morreram de medo e pediram mais de mil vezes a Deus proteção para o general. Não adiantou. O temor é a criminalização do chefe do Executivo, que, ao contrário do que pensa o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), não é missão tão impossível. O argumento do parlamentar para justificar essa suposta certeza é “tudo que o presidente fez no sentido de enfrentar a pandemia”. Será que vivemos em outro país ou a referência do líder tem outro endereço? Certamente não estamos falando da mesma pessoa ou do mesmo governante. Um (o senador) deve estar se referindo a indeterminado ser de outro planeta. O outro é investigado na CPI justamente por falta de atitude e de realizações. Seu desempenho é considerado pífio por algumas centenas de milhões de brasileiros e, principalmente, por crescentes dezenas de deputados e senadores, inclusive a maioria da comissão parlamentar de inquérito.

Repito e reassino o que sempre escrevo. Embora não tenha qualquer sentimento pelo presidente, não torço e nunca torci por sua derrocada. Afinal, mesmo sem meu voto, ele venceu na urna eletrônica e nem lembrou do voto impresso. Fora o ódio que respira e expira desde a posse, não cumpre o que escreveu e prometeu aos apoiadores, mas foi eleito democraticamente. Cumprida pouco mais da metade do mandato de quatro anos, o castelo de areia do capitão Jair Bolsonaro começa a fazer água, consequentemente a desabar. Essa constatação parece ser uma das causas do destempero de segunda-feira (17) à noite, quando, durante o habitual convescote com fanáticos seguidores, chamou de idiotas todos aqueles que já perceberam as omissões, o pouco caso, o despreparo, a incompetência e a irracionalidade do governo.

A gota d’água foi o último DataFolha, que registrou 51% de ruim e péssimo na avaliação popular sobre a gestão bolsonarista da pandemia. Infelizmente, a irracionalidade ainda não acabou, mas o investimento eleitoral daqueles que se diziam decepcionados com governos que se perderam por conta de inverdades terá de ser refeito. Esse grupo está absolutamente arrependido. É a razão começando a se sobrepor à emoção. Como na infância, quando cuspíamos no chão para demarcar terreno, os extremos continuam estabelecendo espaços. No entanto, em qualquer pesquisa informal de botequim são facilmente encontráveis dezenas, centenas – estou próximo de chegar ao milhar – de pessoas tentando um cantinho no gramado intermediário. Elas aguardam apenas o surgimento de um nome com densidade, o fim da maratona pandêmica e o desfecho da CPI da Covid.

Muita água ainda há de rolar no mar revolto da política até a conclusão do relatório do senador Renan Calheiros (MDB-AL). Como seguro morreu de velho, boa parte do eleitorado resolveu acreditar que o parlamentar alagoano conheceu Jesus, esqueceu temporariamente os interesses políticos, está preocupado com a população e, portanto, apresentará um texto sem vícios e perversões e atulhado de verdades contra as mentiras produzidas até agora pelo governo. Mesmo reconhecendo que o senador emedebista é identificado com práticas nada republicanas, temos de ser justos e reconhecer tanto a pertinência das perguntas feitas até o momento quanto a veemência nas respostas às investidas antagônicas e grosseiras do outro lado da Praça dos Três Poderes.

Em outras palavras, apesar da pouca força dos fios de cabelo que lhe restam, Renan tem separado bem o desejo quase uterino de fazer política com a necessidade de apurar os malfeitos federais na pandemia. O que está cada vez mais claro para pesquisadores de fim de semana como eu é o atavismo entre os política e judicialmente “condenados” e o leigo com divisas que levou o país ao fim do mundo. Ou seja, nada há de diferente entre o que esteve recolhido e o que se elegeu como paladino da moralidade e exemplo de probidade. São dois anos e quatro meses de uma fábula mitológica, uma verdadeira quimera. O resultado é que, entre um bruto esperto e preso e um tirano solto, o povo está acordando e torcendo pela volta da brutice e da suposta esperteza. Como cantava Bezerra da Silva, o poeta dos morros, “Pra quem sabe ler um pingo é letra”.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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