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Filho filósofo

Pegadas do homem são passos de tempos passados

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Acervo Pessoal

Jamais imaginei que a vida iria me premiar com um filho mineiro. Eu, carioca e suburbano, não andava por Minas Gerais em busca de nada, mas o simpático estado dos inconfidentes acabou me presenteando com a melhor esposa que poderia ter – que era inteligente, bela, alegre, professora e dirigia um Fusca – e, mais tarde, um filho que vai seguindo o mesmo caminho da mãe em graça e sabedoria, com a mesma habilidade para esportes, ciências exatas e no espírito aventureiro.

O gosto por Fuscas, imagino que ele tenha herdado metade da mãe e metade de mim. Afinal, alguma contribuição eu haveria de dar.

No fim de uma tarde, há alguns anos, a indesejada das gentes me visitou de repente e deixei, muito a contragosto, a esposa descansando num cemitério mineiro e, de alguma forma que ainda estou procurando entender, me desincompatibilizei com Minas Gerais, onde nunca mais me senti muito à vontade. Acredito que ainda esteja num processo de cura a este respeito e, apesar de ter por lá uma casa boa, parentes e amigos, a ideia de me espalhar pelas Minas ainda é um tanto penosa e pouco frequente, estando hoje muito mais integrado aos meus subúrbios do Rio do que à terra do velho Tiradentes.

Mas a companhia do meu filho, seja aqui no barulho do Rio, seja apreciando a silenciosa paisagem da sacada de nosso apartamento nas alterosas, é uma ligação perene e inquebrantável com aquela terra e nossa história. Ele vai crescendo e, na glória de seus nove anos, é um contador de causos como todo bom mineiro.

E, agora, tem se revelado filósofo, cheio de reflexões sobre a vida e suas múltiplas facetas, mostrando raciocínios que, honestamente, me surpreendem. E longe de mim ter as veleidades de um pai vaidoso de sua prole, mas o guri é mesmo bom com os pensamentos.

Dia desses, ajudava-o a fazer um dever de casa de português, onde ele preenchia várias lacunas de um texto com as diversas formas de porquês que os gramáticos de nosso idioma criaram para abrilhantar a forma escrita e atordoar os meninos do quarto ano, quando ele se saiu com esta máxima:

– Os sinais são o sentimento das palavras.

Quando, em condições normais, eu teria dito coisa tão brilhante? Como não imaginara antes que a palavra solta a esmo numa folha de papel pudesse ter mais sentimentos do que sua forma gráfica já trouxera quando guarnecida de uma pontuação? É como se um acento agudo ou circunflexo fosse a premiação de uma expressão, e qualquer verbete de um dicionário aspirasse a láurea de uma cedilha ou a ondulação dolente e macia de um til para se fazer mais importante que suas congêneres não pontuadas.

Desde esse dia, venho prometendo a meu filho usar sua máxima como mote para um poema que ainda não veio – também devo a ele, a pedido, um poema sobre angústia e piquenique – tampouco tenho olhado com indiferença para uma vírgula, um ponto de exclamação ou reticências. Tudo é sentimento.

A mais recente do garoto: passeávamos a bordo de nosso Fusquinha 1970 fantasiado de Herbie (aquele do filme “Se Meu Fusca Falasse”) pelas estradinhas da Floresta da Tijuca, teto solar aberto, e ele ia aproveitando o fresquinho do clima e a beleza das paisagens, quando lançou a reflexão:

– Já parou para pensar que nossa vida pode ser a repetição exata do que pessoas fizeram cinquenta, cem, duzentos anos antes de nós?

Pedi que ele me explicasse melhor e ele seguiu o raciocínio:

– Em outra época, pai e filho podem ter aproveitado um sábado nesta mesma floresta, inclusive passando aqui de Fusca. Naquela hora em que eu tampei a saída de água na fonte em formato de cabeça, a gente podia estar imitando algo feito muitos anos atrás. E nós só estamos repetindo a cena.

Fiquei pensando sobre isso pelo resto do passeio. Talvez nada tenhamos de inédito e, cada detalhe de nossa vida, pode não passar de repetição do que já foi experimentado por alguém que sequer conhecemos, cabendo-nos, hoje em dia, cobrir as mesmas pegadas no chão deixadas outrora.

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