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50 anos depois

Pesquisadora desenterra mortos nos calabouços da ditadura

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Autor/Imagem:
Vasconcelos Quadros/Via Agência Pública - Jornalismo Investigativo

Pesquisadora do período da ditadura, a jornalista Myrian Luiz Alves descobriu pistas que podem acrescentar um capítulo escabroso sobre o extermínio da Guerrilha do Araguaia pelo regime militar: desaparecidos políticos que integravam organizações armadas urbanas teriam sido levados clandestinamente para a região e executados juntos com os militantes do PCdoB em 1974.

Com base em documentos e no cruzamento de informações de fontes militares, Myrian afirmou à Agência Pública que há fortes evidências de que cinco militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML) tenham sido incluídos numa viagem sem volta do Rio de Janeiro a Marabá. Ela sustenta que um deles é o ex-presidente da União Nacional de Estudantes (UNE), Honestino Guimarães.

Outras vítimas do mesmo esquema seriam o funcionário público Fernando Santa Cruz de Oliveira, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, na época com 2 anos de idade, e seu amigo de infância e companheiro de militância, o estudante de Direito Eduardo Collier Filho.

Os documentos do período informam que Santa Cruz e Collier Filho foram presos no dia 23 de fevereiro de 1974 em Copacabana, no Rio de Janeiro, e levados para São Paulo – dois dias depois  familiares confirmaram a presença deles na sede do II Exército, na capital paulista. Honestino Guimarães também foi preso no Rio, quatro meses antes, em 10 de outubro de 1973, e transferido para Brasília.

O silêncio das Forças Armadas que, quase meio século depois, se recusam a abrir oficialmente seus arquivos, tornou a Guerrilha do Araguaia o mais forte dos casos, cheio de fios soltos.  Ocorrido entre 1972 e 1975, o conflito envolveu o PCdoB e as Forças Armadas. O número de desaparecidos é controverso. Pesquisadores estimam entre 59 e 68 militantes, dois terços dos quais teriam sido eliminados depois de feitos prisioneiros. Cerca de duas dezenas de camponeses que aderiram à guerrilha também teriam sido mortos.

Ao analisar duas publicações de filhos de militares que participaram da repressão à época da ditadura, Myrian Alves encontrou as pontas que, segundo ela, amarram o destino de alguns militantes da APML e colocam a possibilidade de que outros quadros da esquerda armada que atuavam em centros urbanos também possam ter sido transportados e mortos no Araguaia.

Um dos livros é Sem Vestígios, de 2008, da jornalista Taís Morais; o outro é Borboletas e Lobisomens, de 2018, originário da tese de doutorado do jornalista e historiador da Universidade de Brasília (UnB), Hugo Studart. Taís é filha do sargento do Exército José dos Reis, agente que usava o codinome “Régis”, e Studart do coronel da Aeronáutica Jonas Alves Corrêa (falecido no ano passado), dois militares com forte atuação na repressão à guerrilha.

Taís já havia tratado do tema em 2005 numa das publicações de referência, Operação Araguaia, os arquivos secretos da guerrilha, em parceria com o jornalista Eumano Silva. Três anos depois, com novos documentos, ela escreveu sozinha o romance Sem Vestígios, onde revela a presença do pai de Hugo Studart, Jonas, nas operações do Araguaia. Também relata que o militar entregou Honestino Guimarães no Araguaia ao personagem fictício de seu livro, Carioca, que na vida real era o sargento Joaquim Artur Lopes de Souza, conhecido no Araguaia pelo codinome de Ivan.

Agentes do Centro de Informações do Exército (CIE) e amigos, Ivan e Régis formariam a principal dupla nas execuções de mais de uma dezena de prisioneiros, segundo Studart. O livro de Taís levanta as primeiras hipóteses sobre a presença de militantes urbanos no Araguaia: “Nem todos os subversivos mortos no Araguaia haviam sido detidos ali mesmo. Muitos foram trazidos de outros cantos. Foi o caso do goiano Honestino Monteiro Guimarães (…). Quem o escoltava era o coronel Jonas, da Aeronáutica, acompanhado por quatro agentes da equipe”, escreveu.

Em Borboletas e Lobisomens Hugo Studart – sem dizer que o personagem a que se referia era seu pai – escreveu que, em julho de 1974 o antigo chefe de Operações do Cisa (Centro de Informações Secretas da Aeronáutica), o coronel aviador Jonas Alves Corrêa pilotou o jatinho HS-125 que decolou do Galeão com destino a Marabá, onde entregou “cinco prisioneiros encapuzados” aos cuidados do sargento José dos Reis (o pai de Taís), e do major do Exército, Leônidas Soriano Caldas.

No decorrer do livro, 158 páginas depois, ele afirma que José dos Reis e Caldas “executaram na mata” os cinco prisioneiros. Segundo ele, no período das chuvas de 1974, as enxurradas haviam levado parte da terra de uma cova rasa, trazendo à superfície um detalhe macabro que descreve secamente: “um cachorro sentiu o cheiro, escavou e encontrou uma mão humana”.

Alertado, um grupo de militares foi até o local. “Escavaram e, quando tiraram o corpo, havia outro embaixo. Tiraram. Mais dois corpos lado a lado. No fundo, mais um corpo. Cinco corpos numa mesma cova rasa”, conta, ligando os corpos à missão que seu pai recebera, em julho, de transportar até Marabá os militantes vivos. “Por essa confluência de indícios, é quase certo que os cinco prisioneiros transportados do Rio de Janeiro para Marabá, em julho de 1974, sejam os mesmos cinco corpos encontrados amontoados, em cova rasa, em dezembro do mesmo ano”. Ele não cita nomes.

Myrian Alves diz que os dois livros tratam de um mesmo fato, cuja credibilidade está no perfil das fontes. A probabilidade de os outros dois nomes serem mesmo Santa Cruz e Collier, segundo ela, aparece no livro de Taís, que procura passar informações codificadas, segundo a pesquisadora. “Basta fazer o cruzamento das informações.

Quando Taís apresenta o nome Jonas [pai do Hugo], entregando Honestino, um “argentino e um francês”, além de outro cujo nome seria Bacuri [codinome de Eduardo Collen Leite, um equívoco Taís admite, já que Bacuri seria assassinado no litoral de São Paulo em dezembro de 1970], fica evidente de quem se trata: Santa Cruz nome espanhol, ou castelhano, e Collier, evidentemente, francês. Posteriormente, Hugo afirma que o pai de Taís e outro agente seriam os responsáveis pela execução, no Araguaia. E afirma, ainda, que Jonas era o responsável por “virar” [transformar em informantes] militantes nas cidades. Creio que o objetivo dos militares era a acareação, para saber até que ponto estavam organizados”, afirma Myrian.

A jornalista lamenta a opção adotada pelos colegas de não revelar o vínculo familiar com as fontes. “Conheço a Taís e o Hugo. Seria mais honesto cada um contar a verdade: meu pai me disse isso e aquilo. Ninguém perguntou a Taís ou pediu para ver o tal diário do Carioca [suposto relato que ela diz ter sido deixado por Ivan e que usa para contar histórias vividas por seu pai], já morto”, diz Myrian, com uma revelação de bastidor importante para se compreender a intrincada trama: “No caso do Honestino, o Hugo me ligou em abril de 2018, antes do lançamento do livro Borboletas e Lobisomens, pedindo-me um conselho. Contou-me que o pai dele lhe disse que foi ele quem levou Honestino e outros três ou quatro, sequestrados no Rio, para serem mortos no Araguaia e que o pai da Taís era envolvido na morte deles [segundo o próprio pai teria lhe dito]. Então, Hugo me perguntou se ele deveria colocar isso no livro. Estávamos em 2018. E eu respondi: ‘se o seu pai disse, coloca’. Nem precisava esperar o livro. Meses antes, ele me pediu para revisar a tese de doutorado dele [UnB], que gerou o livro, e não havia nada sobre isso. Naquele momento, eu não tinha o livro da Taís em mãos. Quando peguei novamente o livro, cruzei. O coronel Lício Maciel [que era do CIE e atuou na repressão à guerrilha], em seu blog, afirmava que o Hugo tinha somente lido o relatório, ou dossiê, da Aeronáutica, e, ainda, que o pai do Hugo tinha o mesmo papel que ele, Lício, que era o de formar grupos de agentes que atuaram no Araguaia e em outros casos”, revela.

Myrian também critica o fato de Hugo, ao contrário de Taís, ter afirmado no livro que vários guerrilheiros saíram de lá vivos, porque teriam feito “delação premiada”, termo que nem existia naquela época. “Nem os militares, que forneceram fotos, documentos, etc, chegaram ao ponto de ‘queimar’ a história daqueles jovens chamando-os de delatores. Foram executados, e é isso que temos de contar”, disse. Ela se refere aqui a um dos capítulos mais controversos de Borboletas e Lobisomens, em que o jornalista sustenta que sete guerrilheiros dados como desaparecidos sobreviveram mediante “delação premiada” e, com identidades falsas, foram incluídos no programa de proteção à testemunha. Myrian diz que não há provas sobre essa afirmação, negada também por familiares dos desaparecidos.

A jornalista considera estranho que a Comissão de Mortos e Desaparecidos não tenha cruzado as informações dos dois livros. Citado expressamente, Honestino Guimarães dá nome ao Museu Nacional da República, em Brasília, é o único presidente da UNE desaparecido e sua atuação está fortemente ligada ao movimento estudantil da Universidade de Brasília (UnB), onde estudava geologia até cair na clandestinidade. “Arrasta-se e repete-se por anos as mesmas informações, sem o aprofundamento que deveria contribuir para os fatos de nossa história e em total desrespeito aos envolvidos”, diz ela. Também critica a Comissão da Verdade “que sequer trabalhou direito no caso Araguaia”, segundo a jornalista.

Em 2008, ao tocar por conta própria uma pesquisa antropológica sobre corpos retirados do Cemitério de Xambioá (TO), Myrian encontrou indícios que levaram a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos a confirmarem, por exame de DNA, que os restos mortais eram do estudante de química da Universidade Federal do Ceará, Bergson Gurjão Farias, primeiro militante do PCdoB morto em 1972, num confronto com uma patrulha do Exército no Araguaia.

A jornalista responsabiliza também a cúpula das Forças Armadas que continua negando informações sobre mortos e desaparecidos durante a ditadura. “Que os militares contem logo tudo sem precisar recorrer aos filhos. Evitaria situações como o caso do Hugo, que participou da Comissão da Verdade, integrou o Grupo de Trabalho Tocantins [GTT encabeçado pelos militares para cumprir uma sentença judicial à procura, sem sucesso, de corpos de guerrilheiros], hoje pertence ao conselho do Instituto General Villas Boas (IGVB) e dá aula de democracia extra curricular na UnB, onde estudava Honestino. Considero tudo isso um escárnio”.

Por tudo que já pesquisou, ela acha que os corpos estão em cemitérios da região do conflito e afasta a hipótese de que tenha ocorrido a “operação limpeza”, destinada a queimar e destruir corpos, versão que ela considera como estratégia de contra informação difundida pelos militares que teria sido aceita sem questionamentos por muitos pesquisadores. Um dos prováveis locais, segundo ela, é o Cemitério do Bairro Cidade Alta, numa área da Aeronáutica, em frente ao Aeroporto de Marabá, a poucos metros de onde funcionava um centro de tortura e de possíveis execuções, conhecido como Casa Azul.

“Quando começamos a pesquisar esse cemitério pelo GTT, em 2011, o assunto foi desviado, como, aliás, sempre acontece”, conta. Ela acha que outros prováveis locais de sepultamento sejam cemitérios de cidades que ficam no circuito onde se deu a guerrilha (confluência do Pará, Maranhão e Tocantins), como o de Xambioá, de onde foram retirados os ossos de Bergson e outra militante do PCdoB, Maria Lúcia Petit, identificada em 1996, os dois únicos corpos de militantes do Araguaia entregues às famílias.

Procurado por Pública, Studart negou que Honestino Guimarães seja um dos presos levados por seu pai e acrescentou uma versão ainda mais polêmica que diz ter amparo em fontes militares mantidas em off: o ex-presidente da UNE teria sido um dos militantes poupados por militares e enviados para fora do país, afirmação que Taís Morais rechaçou em entrevista à Pública.  Segundo ela, pelos documentos e relatos aos quais teve acesso, Honestino foi mesmo levado para o Araguaia; ela também acredita que Eduardo Collier Filho é  um dos outros citados, embora tenha dúvidas sobre Santa Cruz.

O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz disse à Pública que a família nunca tinha ouvido falar na versão de que seu pai possa ter sido levado para o Araguaia, mas acha que o caso deve ser investigado pela relação próxima que ele e Collier Filho tinham com Honestino Guimarães e pela cronologia dos relatos sobre desaparecidos da APLM feitos por Myrian Luiz Alves. A pesquisadora aponta também que no grupo de “encapuzados” possam estar outros dois desaparecidos que integravam a direção da organização, o ex-deputado estadual de Santa Catarina, Paulo Wright (irmão do pastor protestante James Wright que ajudou a organizar, junto com o ex-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, o dossiê Brasil Nunca Mais) e o estudante de economia Gildo Macedo Lacerda. Wright é dado como desaparecido em 1 de setembro de 1973 e Gildo, em 28 de outubro do mesmo ano. Para encobrir o sumiço dos dois, a polícia de Recife criou um episódio conhecido como “Teatro de Caxangá”, versão inverossímil em que os próprios ativistas teriam travado um tiroteio. Os dois faziam a relação da organização com movimentos rurais do Nordeste.

Myrian diz que no período de fusão com o PCdoB, em 1973, a APML era a organização mais aguerrida, com cerca de mil militantes, o que explica ter se tornado alvo do grupo de agentes do CIE. Esses agentes estariam encarregados de atuar contra os grupos da esquerda armada que se juntavam para fortalecer a guerrilha rural. Entre eles, ela cita a ALN, MRT, MOLIPO, PCBR e o PCB, cujas direções seriam eliminadas cirurgicamente pelos militares, bloqueando eventuais alianças e isolando os guerrilheiros do PCdoB.

Outra preocupação constante dos militares, segundo Myrian, era com o possível apoio externo dos guerrilheiros do Araguaia, como os regimes comunistas da China (país em que os militantes fizeram treinamento) e da Albânia. “Há documentos militares, como na Operação Marajoara, afirmando que era preciso eliminar essa aliança e seus quadros. E é isso que vão fazer, ao executar prisioneiros da guerrilha em 1974, mesmo com testemunhas de que foram capturados vivos. O relatório da Marinha do período não mente: preso em tal dia, morto em dia tal. Outro documento diz que a APML não poderia se unir ao PCdoB porque elevaria o nível intelectual. Sim, porque vinham com conhecimento religioso, penetração maior no movimento rural (de lavradores ligados à Igreja), no movimento estudantil. E o PCdoB já tinha a prática do terreno na Amazônia”, conta Myrian. A APML se desmembrou da Ação Popular (AP), organização que tinha na direção o senador José Serra (PSDB-SP) e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.

O movimento em direção ao Araguaia envolvia também remanescentes da Revolta Trombas e Formoso, conflito ocorrido no Norte de Goiás entre 1955 e 1961, cujo líder, o lendário José Porfírio de Souza foi preso na região em 1972. Levado para a prisão do Exército em Brasília e, solto depois de cumprir a pena, desapareceu em Goiânia em junho de 1973. Os militares temiam Porfírio pela força de sua trajetória: organizou e comandou a vitória dos posseiros no conflito com grileiros apoiados pela polícia e foi o primeiro deputado de origem camponesa, eleito em 1962. Porfírio era filiado ao PCB, depois migrou para a AP e, para engrossar a luta armada, fundou o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) junto com outro dissidente da mesma organização, o padre Alípio de Freitas, mentor do atentado a bomba no Aeroporto de Guararapes, no Recife, em 1966, cujo alvo era o ex-presidente Costa e Silva. Diz Myrian: “Não havia somente a “guerrilha” fechada na região. Quem estava lá, aguardava o ingresso de outros. O que houve, de fato, foi o impedimento de entrada, o abandono de guerrilheiros, pelo partido, à própria sorte, e a neutralização dos quadros da APML, como está claro nos documentos”, afirma.

Segundo ela, os planos da esquerda armada era criar uma zona liberada no coração da Amazônia, na época uma região pouco conhecida, onde depois se descobriria uma das maiores jazidas minerais do planeta. “Quando os militares perceberam no que podia resultar, fecharam o cerco e silenciaram as informações externas”, afirma.

A decisão pelo extermínio do foco guerrilheiro, entre setembro de 1973 e início de 1975, na chamada Operação Marajoara, terminou em torturas, execuções a sangue frio e o deliberado sumiço de corpos, o que explica o silêncio militar, as lacunas na história e um pouco do Brasil atual.

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