O lado B da literatura
Pilar Domingo, dom da escrita e de contar causos
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Pilar Domingo. Que nome poético e revelador. Ou estaria mais para contestador? Não consegui decifrar de onde me chega tanta inquietação, talvez por me remeter à mexicana Frida Kahlo. Será? Se bem que as fotografias encaminhadas por nossa escritora me fazem pensar nas pinturas do espanhol Pablo Picasso. Diante desses três talentos, fico com a nossa brasileiríssima Pilar Domingo, cuja saga me deixou boquiaberto.
O ano era 1980. Aliás, verão de 1980. Imaginou a cena? Os jovens, talvez não. Mas prossigamos com a história ou, então, faltarão folhas para escrevê-la. Lembre-se de que estamos em 1980, quando a internet não passava de um sonho.
Naquele tempo, a nossa brilhante escritora dava aulas de Arte na Universidade Federal de Juiz de Fora, para onde ia uma vez por semana. Então, nas sextas-feiras de noitinha, a nossa heroína tomava uma cerveja com seus colegas antes de embarcar no ônibus de volta para o Rio de Janeiro, local onde ela sempre residiu.
Foi durante aqueles anos que Pilar pintou um grande painel sobre diversos módulos, que, quando fosse finalizado, seria montado e terminado já no devido local, no caso, o DNER. Seja como for, a história que se passou é outra, mesmo porque, como dito acima, o ano era 1980 e era verão, e Pilar havia terminado de pintar o tal painel e, para celebrar tamanho evento, resolveu fazer um churrasco no Rio, motivo pelo qual decidiu pegar o ônibus mais cedo.
O coletivo saiu às 15h, e a tarde estava pra lá de quente. Ela havia comprado 20 kg da deliciosa linguiça juizforana. Apesar de contrariada por não levar a sua habitual cervejinha, sem o tradicional bate-papo de despedida, ônibus lotado e, para piorar, o seu costumeiro assento ao lado da janela, bem na frente, já estava ocupado. Teve que se contentar com uma cadeira no corredor e lá no fundo, bem perto do banheiro. Haja estômago!
A nossa escritora, àquela altura do campeonato, não tinha muito o que fazer e, então, tentou relaxar e apreciar a viagem. Mas algo inesperado aconteceu: o rapaz sentado na janela na fileira logo à frente da Pilar começou a passar mal. O motivo logo foi revelado por outro passageiro, sentado ao lado do adoentado. Ele havia ingerido chumbinho.
Foi um Deus nos acuda, até que alguém ofereceu leite pro suicida. Naquele tempo era crença que leite curava tudo. Resultado é que o rapaz começou a colocar os bofes para fora. Em seguida, o motorista mudou o rumo da viagem e foi direto pro hospital, onde o homem foi socorrido a tempo.
Enquanto o motorista, o suicida e o acompanhante estavam no hospital, os ou-tros passageiros aguardavam no ônibus, que, àquela altura, era puro cheiro de linguiça. Foi aí que as pessoas começaram a descer para buscar ares mais acolhedores. Mas aí surgiu outro problema. A polícia, na figura de dois Fuscas, resolveu averiguar o porquê daquela muvuca.
— Todo mundo detido!
Como as viaturas eram pequenas para tantos suspeitos, ninguém foi preso. Nisso, uma senhora, também passageira, retirou quibes que seriam para uma festa familiar, e ofereceu para a galera, que se esbanjou com aquela delícia árabe.
Enquanto o pessoal ainda comia os quibes, eis que surgiu o motorista. Ele disse que o suicida estava bem. Todos ficaram felizes, e a senhora do quibe, para surpresa e regalo dos convivas, surgiu com uma bandeja de docinhos. Afinal, precisavam comemorar a situação.
Após retomarem a viagem, a rapaziada, bucho cheio, acabou dormindo, enquanto o cheiro da linguiça tomou por completo o ambiente, até que, finalmente, o ônibus chegou ao Rio de Janeiro por volta das duas da madrugada. Apesar do alívio dos passageiros, o motorista parecia preocupado e dizia que a sua mulher não iria acreditar na demora. Foi aí que a velhinha dos quitutes disse: “Meu filho, eu te acompanho e conto para tua mulher. Ainda sobrou uma bandeja de docinhos.”
Quanto ao churrasco da nossa autora, aconteceu no dia seguinte. A linguiça fez o maior sucesso, ainda mais porque a Pilar contou o ocorrido na viagem. Aliás, a história foi o grande tempero da festa. Pilar Domingo, grande escritora, é verdade. No entanto, contadora de causos melhor ainda.
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Cassiano Condé, 81, gaúcho, deixou de teclar reportagens nas redações por onde passou. Agora finca os pés nas areias da Praia do Cassino, em Rio Grande, onde extrai pérolas que se transformam em crônicas.
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