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Recado chinês

Pimenta que arde no dos outros arderá no deles

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

De acordo com um dos mais famosos provérbios latinos, Pimentorium in anus outrem refrescus est. Aportuguesando, pimenta no cunha dos outros é refresco. No nosso, é pimenta mesmo. Ardências à parte, enquanto os Estados Unidos e seu líder maior planejavam novos ataques ao mundo, o troco veio na forma de malagueta pura. Como deuses, os norte-americanos cagaram para algumas antigas recomendações acerca do perigo. Mesmo ultrapassadas e aparentemente contidas, elas precisam, no mínimo, ser checadas. Quem não faz isso, perde o bonde, quebra a perna e, se bobear, fica sem o membro inferior. Foi o que aconteceu nessa segunda-feira (27) com Donald Trump, com boa parte dos norte-americanos e, principalmente, com o mercado tecnológico e as chamadas big techs dos EUA.

Com apenas uma semana no cargo mais poderoso do mundo, Trump tomou a primeira trombada de sua administração. O pior é que a cacetada foi dada pelo mais letal dos inimigos econômicos: a China de Xi Jinping. Desde menino ouço dos mais velhos a dica sobre o descrédito em relação a Papai Noel. Por exemplo, meu avô Aristarco Pederneira não perdia a oportunidade de lembrar aos que não acreditavam em Santa Claus a gravidade e os malefícios de pôr o fiofó na janela. Seu lema era: se não crê, não pede. Segundo ele, a insistência representava o enorme risco de tomar um pintossauro na tarraqueta. No ancestral alerta havia um adendo pra lá de perigoso: enormes seriam o pintossauro e a fissura.

Pois bem, Trump e seus seguidores até agora devem estar dolorosamente doloridos com a funhanhada dos tecnólogos de olhos apertadinhos. Aproveitando o prazer quase sexual do endeusado Donald Trump em garrotear e fornicar o mundo, a silenciosa startup chinesa DeepSheek despertou o povo americano para a realidade. Nova no setor, a empresa lançou um produto que utiliza Inteligência Artificial a custo mais baixo e levou para o buraco as ações de gigantes tecnológicas dos EUA. Apenas uma dessas organizações, a Nvidia, perdeu em um único dia US$ 589 bilhões, ou seja, R$ 3,48 trilhões no valor do câmbio de segunda-feira.

Não é nada, não é nada, mas este montante equivale a 6,8 vezes o valor de mercado da Petrobras, a maior estatal brasileira. A sentada foi de tal modo incisiva que, ao que parece, nem a mistura de sal grosso com merthiolate e ácido úrico conseguirá aliviar a dor dos camaradas trumpistas da corrente, do açoite e da escravidão. Acostumada a ouvir de Trump que o Brasil quer mal aos Estados Unidos, a maioria dos brasileiros realmente patriotas torce para que Luiz Inácio reforce os laços comerciais com Xi Jinping e com Vladimir Putin. Se eles, os norte-americanos, não precisam de nós, façamos de tudo para que também não precisemos deles.

Esnobação deve ser paga com esnobação. Em princípio, não vale estimular o conflito, muito menos dizer sim a tudo, sobretudo porque, a exemplo de seus discípulos latinos, entre eles Javier Milei e outros sem mandato, Donald Trump tem devotos e não eleitores. A vida nos ensina que, do mesmo modo que o ódio torna devotos demasiadamente crédulos, a falência de discursos os obriga a procurar santos mais confiáveis, embora supostamente menos poderosos. Não tenho bola de cristal, mas, considerando que as lideranças locais prezam mais a democracia e o respeito do mundo do que a expansão territorial, a gestão autoritária, desumana e acima das leis não terá vida longa.

É apenas uma questão de tempo. Quem viver verá o desastre em que se transformarão a economia e demais políticas públicas implantadas pelo presidente republicano à custa da humilhação alheia e do pouco caso com os direitos humanos. A funhanhada da DeepSheek foi a primeira estocada de Jinping, cujos olhos estão bem abertos. Falta o povo norte-americano acordar. Quanto ao Brasil, nosso país é belo e, independentemente da agressividade parasitária de Donald Trump, continuará de pé. Sobre a sapecada da tecnologia chinesa na IA dos EUA, vale lembrar que, além de primeiro castigo, a moral dessa história renderia um belo roteiro para um filme de Hollywood: a mesma pimenta que arde no fiofó dos outros um dia pode arder no deles.

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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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