Não foi no tempo em que as galinhas tinham dentes, foi bem antes, quando estes mal começavam a despontar na gengiva das bichinhas. É sabido que anjos não nascem, vêm em fornadas, que nem pão quente. E foi assim que, em uma fornada angelical, surgiram dois anjos pequeninos, destinados a ficar do tamanho de crianças humanas. A burocracia celestial encaminhou um deles às hostes do austero arcanjo Miguel; o outro juntou-se às legiões do mais belo e poderoso dos anjos, Lúcifer, o portador da luz.
Transcorreram eras – as galináceas já ostentavam uma esplêndida dentadura – quando houve uma tentativa de golpe de Estado no céu. Foi um fracasso, pior que o 8 de janeiro dos bolsomínions, Lúcifer e seus seguidores perderam de 7 x 1. Os sequazes do anjo rebelado não foram mandados para equivalentes da Papuda e da Colmeia, como aconteceu por aqui. Seguiram direto para as profundas do inferno, novo em folha, inaugurado na ocasião. Entre eles estava o anjinho rechonchudo, tão inocente, nem participou da revolta de seus companheiros. Mas não teve jeito, desceu com a galera.
O tempo passou – as galinhas já haviam perdido sua dentição – quando, certo dia, o anjinho lá de cima desceu para brincar em um mundo recém-criado. Por coincidência ou brincadeira de mau gosto do destino, o anjinho lá de baixo subiu para fazer o mesmo.
Os dois se encontraram, vieram lembranças da fornada em que surgiram ou algo assim, e resolveram brincar juntos. Ou então simplesmente decidiram brincar, crianças – ou anjinhos crianças – não precisam de motivos fundados para se aproximar.
Os dois passaram o dia perseguindo aves e insetos voadores, correndo atrás de quadrúpedes, jogando pedras em macacos esquisitos, que tentavam caminhar sobre duas pernas (por sorte erraram, não mataram macaco algum, ou talvez eu não estivesse aqui para escrever este conto, nem vocês para lê-lo). Ao cair da noite, exaustos mas felizes por ter encontrado um amigo, os dois voltaram para seus respectivos domínios, prometendo se ver no dia seguinte. O anjinho de baixo falou para seus severos instrutores.
– Vocês não vão acreditar, mas encontrei um amigo. Brincamos o dia inteiro. Ele voa que nem eu, é gordinho que nem eu… mas, não sei por quê, seus chifrinhos ainda não apareceram!
– Seu demoninho fiodeumaégua! Você fez amizade com um anjo! – berrou um diabão cascudo. E deu uma surra de criar bicho no pobre diabinho. Na verdade, os diabões brutais fizeram fila para dar palmadas nele, que ficou com a bunda ardendo por muito tempo.
Na mesma ocasião, no céu, o anjinho informava à galera angelical:
– Sabem, encontrei um amigo. Brincamos o dia inteiro. Ele voa que nem eu, é gordinho que nem eu… a diferença é que, na cabeça, ele tem umas pontas assim – e fez, com os indicadores, dois chifrinhos.
Os anjões se entreolharam. Finalmente, um deles falou.
– Anjinho, você fez amizade com um demônio. Isso é inadmissível.
– Vo…vocês vão me castigar? – balbuciou, assustado, o pequenino.
– Não castigamos ninguém, somos bons e justos por essência, tementes a Deus, guardiães da Lei – respondeu o anjo. – Mas descartamos criaturas defeituosas, problemáticas.
Em seguida, estendeu a mão e, com um gesto imperioso, reduziu o anjinho a um punhado de cinzas.
Moral (?) da história: a justiça das criaturas de bem, tementes a Deus e guardiãs da Lei e dos bons costumes, pode ser pior que a brutalidade de mil demônios.