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Afinal, quem morreu?

Pneu furado nem sempre é sinal de mau agouro

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Não precisou ninguém me avisar que algum morador do meu prédio havia morrido. Um carro do IML estacionado na rua em frente. Mentalmente, apostei comigo que o seu Arnaldo, já passado dos 90, teria sido o da vez. Que nada! Errei feio. Mal pisei na portaria, dei de cara com aquele amontoado de rugas.

Cumprimentei meu vizinho e tratei de ir direto para o meu apartamento, mesmo porque a bexiga estava estourando. Diante do vazo, tentei adivinhar quem havia passado desta para melhor. Dona Lourdes, moradora do 201? O fulano do 104 que vive engravatado? Seria aquela das coxas torneadas do 303? Espero que não, pois vê-la saindo de bicicleta é um dos raros prazeres de se morar aqui nesse ambiente cheio de pessoas esquisitas, entre as quais me incluo.

O edifício possui apenas 24 apartamentos, sendo três ou quatro desocupados. Tirando alguns casais, sendo dois com filhos, e esse povo que possui cachorro ou gato, a maior parte é solitária. Então, basta um bom dia ou um leve aceno com a cabeça para cumprimentos de praxe. No máximo aquele sorriso falso, mesmo porque não gosto de perder tempo com coisas alheias ao meu mundo, que, apesar de pequeno, não me interessa ir além.

Quer dizer… Afinal, quem é o defunto? Essa dúvida me consumiu de tal maneira, que nem senti o sabor do sanduíche de salame, a derradeira refeição antes de me recolher. Teria sido o poodle da moradora ao lado? Afinal, não ouço os seus latidos desde que cheguei. Não! Até onde sei, o IML só recolhe cadáveres humanos.

Levei tempo para adormecer, o que me fez demorar mais do que os costumeiros dez minutos para criar coragem para expulsar meu corpo da cama. Proletário que sou, tomei coragem e fui até a cozinha preparar o café. Acabei perdendo a conta das colheradas de açúcar. Exagerei, mas a preguiça me desencorajou a fazer outro. O doce escorreu doendo goela abaixo.

Banho tomado, precisei me apressar para não perder o ônibus. Passei pelo porteiro, que me cumprimentou. Lancei-lhe um olhar esperando algo além do oi costumeiro. Nada.

Na rua, virei à esquerda e caminhei até o ponto de ônibus. Meia hora após, entrei no trabalho, onde, como de costume, procrastinei o máximo possível até que, sem mais desculpas, tive que resolver algumas pendengas acumuladas sobre a mesa. Todavia, por mais que tentasse me concentrar naquela pilha de papéis, meu pensamento cismava em tentar descobrir quem era o vizinho que havia morrido.

Final de expediente, retornei para casa. Não foi naquele dia que consegui desvendar o mistério. No entanto, no dia seguinte, acordei pouco mais cedo, o que me deu alguns minutos para conversar com o porteiro. Ele, a princípio, ficou surpreso, pois nunca havíamos trocado mais do que algumas palavras em mais de dois anos.

— Ninguém morreu aqui, não, seu Júlio.

— Não?

— Não.

— Ué, mas anteontem tinha um carro do IML parado aqui em frente.

— Ah, aquilo foi apenas um pneu furado.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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