Passava parte do dia sentado nos degraus da escadaria do museu, oferecendo pequenas esculturas feitas com galhos e folhas. Não que vivesse nas ruas, porque só ficava ali por três dias da semana, a fim de conseguir dinheiro e comprar mantimentos. Nos outros momentos, se refugiava em um casebre, em uma área de reserva ambiental muito próxima.
Vamos chamá-lo de Raimundo, como são tantos brasileiros.
Raimundo é nordestino, pouco letrado, mas dotado de um talento autodidata. Quando chegou à cidade grande, logo sentiu na pele a dificuldade de se empregar. Graças a um pequeno serviço de entrega, conheceu a reserva ambiental que cercava as belas casas, onde servira. Seu instinto o levou para dentro, e ali levantou um casebre, nos moldes do sertão, e cravou seu refúgio e sua liberdade.
Ao seu redor, respirava tudo o que no agreste não tinha: muito verde, muita água, muita madeira, muita pedra, umidade… até companhia!
Raimundo era escultor de ideias: olhava uma pedra e via uma mulher; sentava em um tronco de árvore e percebia que poderia ser um cavalo.
A água que minava coloria de musgo o terreno que ele moldava.
A arte dentro dele o conduzia. Pouco a pouco o casebre foi cercado de imagens. Algumas mais destacadas, ofertadas pela natureza que as colocava em local isolado; outras mais misturadas à vegetação, porque não se libertava da raiz ou de sua vizinhança.
A água, sim, se moveu canalizada, para atender a sua necessidade pessoal e de trabalho. Uma arquitetura de bambus que daria inveja a qualquer engenheiro do governo (caso pensasse como povo e não como canetada).
Raimundo usava o que dispunha. A natureza lhe oferecia sem precisar agredir.
O fato de se sentar nas escadarias do museu não significava que ele não tivesse entrado um dia… e outro dia também. A arte, quando batiza o artista, é fogo que queima e arde para sempre. E seja pincel, martelo, mãos ou enxadas mesmo na terra, sempre será revelada. E assim, Raimundo criou um museu a céu aberto: figuras verdes, madeiradas; figuras petrificadas; figuras molhadas – arte sacra na natureza.
E um dia, na escadaria, Raimundo conhece André: menino de pés descalços, que faz da música sua arte.
André toca sanfona, que, na cidade grande, se chama de acordeão. Raimundo logo se lembrou do forró lá do sertão, e, fechando os olhos, sentiu que André seria um bom companheiro. Mas a prudência é amiga, e Raimundo soube esperar.
Depois de semanas de convívio, convidou André para morar com ele no refúgio das esculturas, que agora estaria completa, já que, de arte, só faltava a música.
André, menino sabido, cansado de se defender sozinho, aceitou a ideia de Raimundo e levou sua sanfona para alegrar os micos.
A partir daquele dia, a mata ficou mais feliz. Raimundo até dançava, abraçado ao galho que esculpira e vestira como mulher. Assim os dias passavam na alegria. E, com música, Raimundo criava.
Mas uma noite, André se empolgou e tocou até mais tarde. O som atraiu a atenção da vizinhança, que chamou a polícia que fazia ronda ali por perto. Chegaram dois policiais, já com as mãos nos cassetetes. O que fazem aqui? Seus documentos!
Raimundo conhecia bem aquele tom de voz. Fez sinal pra André sentar e foi lá dentro pegar a documentação.
Conversou com a polícia, explicou o acontecido. Mostrou as artes que fazia e o tempo que ali vivia. Mas policia não é sensível à arte, e o homem da lei só disse: “Aqui é reserva ambiental. Ninguém pode morar. Você está preso por destruir a floresta!”, e jogou Raimundo dentro do carro. André, assustado, correu e se escondeu no meio da mata.
Deixa o sanfoneiro pra lá. Vamos levar esse aqui!
Naquela noite, a reserva ficou em silêncio: os grilos calaram; os vaga-lumes apagaram; a “mulher” foi violentada; e a sanfona, largada nos pés da mulher de pedra ficou abandonada.
A noite ficou mais escura – parecia mesmo que vestira luto.
E, na ladeira estreita e asfaltada, o carro de polícia era o único que descia, levando o escultor de ideias para a delegacia.
E lá se foi o Raimundo, conversar com o delegado, que, com sono e aborrecido, resolveu trancafiá-lo. Crime contra o meio ambiente é inafiançável. Agressão ao meio ambiente!
Raimundo dormiu na cadeia e, de lá, foi para o presídio, sem direito à defesa. Afinal, nordestino brasileiro, pouco letrado e artista… Existe crime maior?
Dias depois, por exigência de papéis, o delegado foi ver a cena do crime. Encontrou toda aquela arte esculpida. Mandou cercar a área e chamou o trator da prefeitura.
Veio aquele monstro de ferro e passou por cima de tudo: acabou com o casebre, atropelou o cavalo e enterrou a fonte de água que minava, ficando sufocada.
Por fim, por ordem da autoridade, uma placa foi colocada:
RESERVA AMBIENTAL.
NÃO ENTRE!
E assim pensou fazer justiça, o delegado.
Mas o que o delegado não sabia é que Raimundo mantinha em segredo, as esculturas dos Orixás, amigos de horas difíceis e local de recuperação e força.
Na roda no centro Xangô majestoso esculpido em uma enorme pedra. Atrás de Xangô, na roda, Oxóssi garantindo a caça para que não lhe faltasse alimento, do lado direito Oxum protegendo sua emoção, seu equilíbrio, ao lado de Oxum – Ogum protetor do território incentivador das lutas diárias e entre Oxóssi e Ogum, a linda figura de Iansã, aquela que domina o tempo. Entre deuses e humano a relação afetiva que o consolava e o inspirava.
E a partir daquele dia, o delegado sonhava que um trator o atingiria derrubando sua casa, deixando em pó seus pertences e se vendo só no meio de tudo. Enquanto isso, na cela, Raimundo esculpia em pequenas pedras as imagens que cultuava como artista. A cada sono perdido, o delegado se perguntava – será que o artista destruído o mantinha encarcerado?
Ao visitar a prisão, encontrou exposição de esculturas em toda parte. Protegido pelos detentos, Raimundo ensinava arte. O delegado então percebeu que se pode prender o homem, mas nunca a sua liberdade de criar.