“É um momento delicado de teoria dos jogos. Como em um contexto de guerra, quando os dois lados não querem a guerra de fato, mas se armam, se armam, se armam até que um imprevisto acontece, dois capitães de navio brigam, e aí a guerra é deflagrada. Este é o momento em que o país vive.”
O cenário é descrito por Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV-EAESP. Em entrevista por telefone à BBC News Brasil, o sociólogo discute os possíveis efeitos de uma crescente politização e adesão a ideias bolsonaristas dentro dos quartéis das polícias militares de Estados brasileiros como São Paulo.
Na visão do especialista, minorias estridentes de policiais têm respondido a chamados bolsonaristas de desobediência a governadores, enquanto a maioria, desvalorizada e insatisfeita com suas condições de trabalho, não parece disposta a reagir em caso de escalada rumo a uma ruptura institucional.
Em um momento de intensa politização dentro dos quartéis, concomitante a uma abundância inédita de policiais eleitos para assembleias legislativas e o Congresso nacional, os limites entre polícia e política estão cada vez menos claros. “Parece que o Brasil nunca esteve tão próximo de uma ruptura democrática pelas mãos dos policiais”, avalia Lima.
“Há um grupo minoritário e estridente de bolsonaristas convictos e dispostos a defender o presidente na polícia. Mas o problema não está só neste grupo minoritário, que se opõe politicamente ao governador. O problema está no pensamento da maioria: ‘estou só cumprindo a minha função, não vou brigar com o colega que quer brigar com o governador porque o governador não me dá aumento, vou ficar na minha’”, diz.
“O bolsonarista-raiz, portanto, é minoria na polícia, mas a exaustão pelas condições de vida, trabalho, salário, e um ciclo de não reforma das polícias nos últimos 31 anos, desde a (criação da nova) Constituição, vai permitir que muitos se omitam.”
“Está posto o risco”, alerta o pesquisador, para quem a tensão é alimentada por uma desconexão entre a retórica policialesca do presidente e a falta de investimentos práticos do governo na carreira e no bem-estar dos policiais.
“Bolsonaro já está no governo há um ano e seis meses e não fez nada que pudesse mudar a situação de vida e trabalho dos policiais”, diz.
“Não atender as demandas também é uma forma de se manter protagonista.Porque se você resolve, você desmobiliza a sua base eleitoral. Se você oferece condições de vida e trabalho, você se enfraquece como porta-voz da insatisfação. O governo explora o medo, o pânico, a insatisfação, ao mesmo tempo em que não atende as demandas — a não ser as ideológicas — , porque se fizer isso, ele deixa de ter uma moeda de troca para manter a base permanentemente mobilizada.”
‘Polícia não cumprirá ordens ilegais’
Uma série de episódios, nas últimas semanas, acendeu alertas para o comportamento de policiais simpáticos ao governo federal.
Políticos e autoridades como os deputados federais Eduardo Bolsonaro, Bia Kicis e Carla Zambelli e o Presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, incentivaram publicamente que policiais militares de São Paulo desobedecessem ordens do governador João Doria.
“A Polícia Militar de São Paulo nunca decepciona, sempre dá o exemplo. Vídeo da manifestação hoje na avenida Paulista, SP”, tuitou Eduardo Bolsonaro, junto a imagens que sugeriam que PMs batiam continência a manifestantes que pediam o afastamento de Doria.
O mesmo vídeo foi compartilhado por Camargo. “O recado me parece claro. A polícia de São Paulo não mais cumprirá ordens ilegais do tiranete Doria.”
A PM reagiu, informando que a continência não era sinal de apoio à manifestação, mas uma homenagem a um colega morto recentemente. As publicações distorcidas, no entanto, foram mantidas pelos autores sem qualquer correção. Mas os estímulos ao confronto entre policiais e governador também tem vindo de dentro das polícias — como a associação Defenda PM, que reúne dois mil oficiais e desafiou Doria, a quem classifica como “despreparado”, ao afirmar publicamente ser contra a prisão de quem desobedece a quarentena.
Um cabo da PM chegou a ser afastado da cobertura dos protestos do último fim de semana, em São Paulo, depois que jornalistas divulgaram uma foto postada pelo oficial em uma rede social com a legenda: “Hoje tem manifestação e os antifas querem marcar presença. Eu quero cacetar a lomba dos baderneiros”.
Já no Distrito Federal, parlamentares registraram denúncias de incitação a violência por parte de PMs contra os manifestantes antibolsonaristas, classificados pelo presidente como “terroristas”, “desocupados” e “maconheiros”.
Segundo jornais, autoridades na própria polícia teriam criticado as cenas de dura repressão a um protesto contrário ao presidente, organizado por torcidas organizadas, e de suposta leniência a apoiadores do presidente portando bastões de madeira ou símbolos extremistas.
Ao jornal Estado de São Paulo, o coronel Alvaro Batista Camilo, secretário executivo da PM de São Paulo, reconheceu a dificuldade nos quartéis.
“O desafio de manter a política longe dos quartéis é grande. Há limites à liberdade de expressão, mas temos mantido a situação sob controle. A PM trabalha para o cidadão, não é polícia de governo, mas de Estado”, disse.
‘Forças auxiliares e reserva do Exército’
Ex-membro do Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, ligado ao Ministério da Justiça e Segurança pública, e um dos responsáveis pelo Atlas da Violência, referência para sociedade e governos sobre mortes violentas e crimes no Brasil, o professor Lima diz que os protestos do último fim de semana mostraram que o debate público sobre a resposta ideológica dos policiais pautou ações efetivas nos comandos policiais.
“O que vimos no fim de semana tem um lado positivo e outro preocupante. Houve forte mobilização na semana anterior, com ministros do Supremo, jornalistas, jornais, debatendo”, diz.
“O assunto estava sendo discutido nos gabinetes, entrou na agenda pública e passou a ser gerenciado. Vimos uma atuação mais profissional e cuidadosa. Positivamente, a instituição mostrou que sabe controlar quando é pressionada. Negativamente, só fez isso depois de muita pressão”, continua o professor.
Lima ressalta que a preocupação com a atuação antidemocrática “dos policiais enquanto grupo de indivíduos se mantém”.
“Das polícias, enquanto instituição, menos.”
Para o especialista, a base radical do presidente “assumiu um discurso muito agressivo, principalmente pelas redes sociais, mas também no Parlamento”.
“E não há contraponto. O outro lado está se escudando apenas na questão institucional, na ideia de que as instituições vão funcionar e sobreviver”, afirma o professor. “Mas não existe vácuo na política. Se um lado se omite, o outro pode eventualmente ganhar este espaço e ganhar por WO.”
Segundo o artigo 144 da Constituição, as Polícias Militares nos Estados são “forças auxiliares e reserva do Exército”, subordinadas “a governadores dos Estados e do Distrito Federal”.
Na qualidade de oficiais de “reserva”, em caso de grave instabilidade pública ou política, as PMs passam automaticamente a responder ao comando do Exército, segundo o professor.
Atualmente, nove dos 22 ministérios de Bolsonaro são comandados por militares. Mais de 2,5 mil militares ocupam cargos administrativos e em estatais. A proporção de militares no governo brasileiro é superior à da Venezuela.
Polícia e política desde 2018
Os últimos meses na América Latina mostram que ameaças de ruptura pela ação política de minorias policiais não são um fenômeno apenas brasileiro.
Em fevereiro, o processo que resultou efetivamente no afastamento do ex-líder boliviano Evo Morales foi deflagrado por uma revolta de policiais da Unidade Tática de Operações Policiais (Utop) de Cochabamba.
O motim se espalhou por corporações de cidades importantes como Santa Cruz de la Sierra e Sucre, até chegar à capital, La Paz.
No Chile, a resposta violenta a manifestantes por parte dos chamados carabineros (polícia nacional chilena) — classificada por órgãos internacionais como violações graves de direitos humanos —, foram o combustível para que os protestos se espalhassem por todo o país.
No Brasil, a politização das polícias — ou o policiamento na política — é um fenômeno que ganhou força nas últimas eleições, quando o número de policiais ou militares eleitos para o Congresso Nacional ou assembleias estaduais quadruplicou em relação a 2014.
Mais da metade dos 73 militares e policiais eleitos em 2018 eram filiados ao PSL — então partido do presidente Bolsonaro.
“O preponderante nas últimas eleições foi a exploração do pânico social. Medo difuso de altos índices de violência, do inimigo que deve ser combatido, que era o corrupto, que foi sendo colado no espectro político à esquerda, e o medo da desordem. Quem melhor traduz o sentimento de ordem na sociedade são as Forças Armadas e as polícias. Os candidatos do PSL, naquele momento, todos apoiadores da candidatura de Bolsonaro, estavam nucleados na ideia de construir uma nova ordem, porque a existente era definida como o caos, a criminalidade generalizada”, analisa Lima.
Da mesma forma que policiais eleitos passaram a influenciar decisões em instâncias políticas, segundo o especialista, aqueles que não conseguiram se eleger também trouxeram seu partidarismo para os quartéis.
“Há um número muito grande de integrantes que tentam fazer a passagem para a política, eventualmente não se elegem, voltam para as instituições, e aí começam a disputar o significado das ações policiais de acordo com a chave política, e não com a chave operacional ou jurídica. Isso cria uma zona de disputa que vira o que está na moda hoje: vira uma guerra de narrativas. Como se a atividade policial fosse uma narrativa. Não é. Ela é um regramento.”