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Políticos precisam cortar na própria carne

José Fucs

O estudante paulistano Guilherme Romão se diz “desiludido” com a política e os políticos do País. Aluno do último ano do curso de Direito na PUC de São Paulo e estagiário de um escritório de advocacia, Romão, de 23 anos, conta que, nas três eleições em que cumpriu a obrigação cívica do voto, procurou escolher candidatos que realmente o representassem e pudessem contribuir para elevar o nível do debate e melhorar a gestão pública. O resultado, porém, não foi o que ele esperava.

“O que mais me desanima é a corrupção e a sensação de que os políticos estão sempre pensando em se favorecer ou em favorecer um partido, nunca a sociedade”, afirma. “Eu até acredito que existam políticos que levem a política a sério, mas o sistema acaba sendo mais forte que as boas intenções.” Ainda assim, Romão não perdeu a esperança de que a forma de se fazer política no País possa mudar, ao contrário de alguns de seus colegas de faculdade, que dizem acreditar que o Brasil “não tem jeito”. “Tem de existir um caminho”, afirma. “Só que eu não sei qual é.”

O caso de Romão reflete com precisão uma percepção generalizada dos brasileiros em relação ao mundo da política e aos políticos que deveriam nos representar. A maioria absoluta da população, segundo as pesquisas de opinião, vê os políticos e os partidos com grande desconfiança – e não é de hoje. Agora, porém, com a descoberta do petrolão e de outros escândalos bilionários e com as sucessivas demonstrações de desprezo pela inteligência alheia protagonizadas pelos políticos em Brasília, o termômetro de credibilidade atingiu um nível deplorável.

Numa pesquisa para medir a credibilidade das instituições no País, realizada em abril e maio pelo Instituto Ipsos, uma das maiores empresas do ramo no mundo, os políticos ficaram em último lugar. Nada menos que 97% dos entrevistados afirmaram não confiar nos políticos (78%) ou confiar pouco (19%). Em outro levantamento, realizado pela GfK Verein, uma organização sem fins lucrativos da Alemanha que se dedica à produção de estudos de mercado, o Brasil foi o país em que os políticos tiveram a pior avaliação, ao lado de França e Espanha. De acordo com o estudo, que ouviu cerca de 30 mil pessoas em 27 países, para avaliar o nível de credibilidade de mais de trinta profissões, apenas 6% dos entrevistados no Brasil disseram confiar nos políticos, o mesmo patamar da pesquisa anterior, de 2014, contra uma média de 30% nos países da amostra.

“Há uma grande insatisfação com a classe política no Brasil”, diz o cientista político Christopher Garman, diretor de mercados emergentes da Eurasia, uma consultoria americana especializada em riscos políticos. “Os partidos estão na berlinda”, afirma o cientista político Fernando Abrucio, coordenador do curso de administração pública da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo. “Isso é muito ruim para a democracia.”

Com o impeachment de dois presidentes em 25 anos, a confiança e a representatividade em xeque, o envolvimento de dezenas de políticos em escândalos de corrupção e uma prática política que funciona na base do toma lá, dá cá, parece evidente que a democracia brasileira está enferma. O atual sistema político, marcado pela pulverização dos partidos e pelo fisiologismo em larga escala, dificulta a governabilidade e a adoção de políticas públicas de qualidade – e quem acaba pagando a conta, como sempre, são os cidadãos. “Nosso pior problema é o clientelismo, o corporativismo, o interesse de grupos em manter e ampliar seus privilégios”, diz o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Nunca se fala no interesse comum. Pelo menos alguns partidos têm de insistir mais no bem comum.”

Diante das evidências de que modelo atual se esgotou, a reforma política, da qual tanto se fala, mas pouco se faz para implementá-la para valer, ganhou um caráter de urgência semelhante ao que levou à implantação do Plano Real para debelar a hiperinflação, em meados dos anos 1990. Sem uma reforma política que torne o País governável, com um mínimo aceitável de espírito público, dificilmente será possível adotar as medidas necessárias para superar a atual crise econômica e reverter os seus perversos efeitos sociais. “Os sinais de esgotamento são tão generalizados que o sistema só vai sobreviver se demonstrar que é capaz de fazer uma autorreforma”, afirma o diplomata Rubens Ricupero, ex-embaixador nos Estados Unidos e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente. “Se não fizer essa reforma, cedo ou tarde, nós vamos caminhar para uma crise fatal.”

Nesta reportagem, a segunda da série “A Reconstrução do Brasil”, dedicada ao debate dos principais desafios do País depois do impeachment, o Estado analisa a atual crise política e discute as principais propostas que devem fazer parte da reforma e podem transformar a forma de se fazer política no País. Depois de muitas tentativas fracassadas, começa a se formar um consenso entre as principais lideranças políticas e alguns representantes da academia de que, para a reforma andar no Congresso Nacional, é preciso concentrar forças em algumas poucas medidas de impacto, em vez de querer fazer tudo de uma vez, para passar a limpo o sistema político e eleitoral. Ainda que a reforma política possível fique longe da ideal, ela poderá representar uma contribuição relevante para reduzir a instabilidade política existente hoje e criar um novo cenário que permita, mais à frente, a implementação de novas mudanças. “Eu tentei fazer muitas reformas e você sabe que, quando a gente tenta mudar tudo, não consegue mudar nada”, diz Fernando Henrique. “Tem de se concentrar nos pontos que têm consequências sobre outros ao longo do tempo. Esse tipo de reforma pode demorar a surtir efeito, mas dá resultado.”

No momento, os esforços no Congresso concentram-se em torno da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) apresentada pelos senadores Ricardo Ferraço e Aécio Neves, do PSDB. A PEC, aprovada há duas semanas na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e com votação do plenário prevista para outubro, depois das eleições municipais, prevê a adoção de quatro medidas: a cláusula de desempenho, o fim das coligações nas eleições para deputado federal, estadual e vereador, o reforço da fidelidade partidária e a liberação das federações de partidos (leia o quadro). “Estou certo de que essas mudanças vão proporcionar racionalidade ao sistema político”, afirma Ferraço. “Com essa fragmentação partidária, não dá para viabilizar uma agenda estratégica para o País. Precisamos estabilizar a crise política, para poder oferecer respostas à crise econômica, que é gravíssima.”

Considerada fundamental para favorecer a governabilidade, a cláusula de desempenho deverá provocar uma redução significativa no número de agremiações existentes hoje, caso seja efetivamente implementada. Com 35 partidos em funcionamento, 28 dos quais com representação no Congresso, e outros 45 em formação, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tornou-se uma batalha complexa para o Executivo construir uma maioria estável e negociar acordos para a aprovação de projetos relevantes, como as medidas de contenção de gastos e a reforma da Previdência. Nenhuma grande democracia no mundo funciona com esse número de partidos. “O nosso sistema partidário está na UTI e padece de condições mínimas para produzir resultados para a sociedade. Hoje, ele só produz resultados para algumas pessoas e um grupo de políticos”, diz Ferraço.

Embora a PEC não imponha restrições à criação de novas legendas, ela limita o acesso aos recursos do Fundo Partidário, alimentado com o dinheiro dos pagadores de impostos, ao tempo gratuito no rádio e na TV e à estrutura do Congresso aos partidos que conseguirem ao menos 2% dos votos em 14 unidades da Federação a partir de 2018 e 3% a partir de 2022. Como a maioria das siglas só existe para receber o dinheiro do Fundo Partidário, que lhes garante, no mínimo, quase R$ 100 mil por mês, e para barganhar o tempo no rádio e na TV com os grandes partidos, a cláusula de desempenho acabará por desestimular, por tabela, a proliferação partidária. “Não é possível o Brasil viver com esse multipartidarismo irresponsável”, afirma o jurista Célio Borja, ex-ministro do STF, ex-presidente da Câmara dos Deputados e ex-ministro da Justiça. “Muitos partidos não existiriam se não recebessem uma fatia do Fundo Partidário.”

Em 1995, um dispositivo semelhante chegou a ser aprovado pelo Congresso, mas teve a sua constitucionalidade contestada pelos pequenos partidos, sob o argumento de que feria o direito das minorias. Depois de 11 anos, o STF acabou defenestrando a cláusula de barreira. Apesar de a medida ter sido aprovada na época como uma lei ordinária e não uma PEC, como agora, nada garante que, desta vez, se ela for aprovada pelo plenário do Senado e depois pela Câmara dos Deputados, não haverá novas contestações no STF.

Se a Corte manterá o entendimento da questão ou não, só o tempo dirá. Por ora, o certo é que, com as eventuais contestações, a cláusula de desempenho poderá levar anos para ser implementada, se o STF decidir, ao final, pela sua constitucionalidade. “Foi um erro absurdo do Supremo derrubar a cláusula de barreira”, afirma o jurista Nelson Jobim, ex-presidente do STF e ex-ministro da Justiça e da Defesa. “Tenho a impressão de que, agora, o Supremo já percebeu a bobagem que fez. O argumento dos pequenos partidos de que ela feria o direito das minorias era uma visão romântica da realidade, que não dizia respeito à questão.”

Tão importante quanto a cláusula de desempenho prevista na PEC que tramita no Senado, mas com menos probabilidade de render contestações no STF, são o fim das coligações proporcionais, para evitar os “casamentos” de ocasião, o reforço da fidelidade partidária, para evitar o troca-troca que simboliza a falta de identidade programática da maior parte das legendas, e a liberação das federações de partidos, que deverá beneficiar principalmente as pequenas legendas, ao permitir que elas se unam para atuar como se fossem uma única agremiação.

Com o fim das coligações para vereadores e deputados federais e estaduais, a partir de 2020, a votação do candidato de um partido, não poderá mais ser somada às de legendas coligadas, para calcular a distribuição de cadeiras. Hoje, o eleitor vota num “puxador” de votos de um partido, como o humorista Tiririca (PR-SP), mas pode acabar elegendo, sem querer, candidatos de outras siglas, que receberam, muitas vezes, uma votação insignificante. No caso da fidelidade, a restrição à migração partidária evitará que os candidatos recorram a “legendas de aluguel” para se eleger e logo depois mudem de partido.

Foi o que aconteceu com o ex-presidente Fernando Collor, ao se eleger senador em 2006 pelo PRTB, o partido de Levy Fidelix. Logo depois da posse, ele migrou para o PTB – em março deste ano, Collor mudou novamente de legenda, desta vez para o PTC. “Ele me usou, usou o partido, nossa boa-fé, nossa pequena estrutura para alçar o voo de águia. Faltou a ele, no mínimo, elegância”, disse Fidelix na época, que esperava multiplicar, com a eleição de Collor, a cota de seu partido no Fundo Partidário. À primeira vista, pode parecer que as questões incluídas na PEC em tramitação no Senado representam pouco, diante da magnitude da crise política, mas é um começo.

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