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Ponteiros param e cidade perde seu buon giorno

Eram 3h57 de uma fresca tarde numa cidadezinha remota e perdida no tempo. Na rua principal, com palmeiras e calçamento de pedra, larga e tão longa que parecia terminar lá nas montanhas, em frente à praça, várias casas geminadas alinhavam-se com suas portas de folha dupla e janelas de guilhotina voltadas para a via pública. De uma delas, sobre os degraus que levavam a um pequeno vestíbulo que antecedia a sala, um senhor vestido de terno claro, olhos bondosos e um cavanhaque grisalho consultava o relógio retirado do bolso do colete.

“Quase na hora”, pensou, guardando o relógio de volta, preso à corrente de prata.

Bem naquele instante dobrou a esquina do quarteirão daquelas casas, na carrocinha puxada por um belo cavalo baio, o vendedor itinerante. Precisamente às 4h chegava à rua, para passar pelas casas de fronte à praça, aquele simpático italiano com queijos, embutidos, conservas, rapadura, grappa, todos acomodados na parte de trás da carrocinha, guarnecida por um forro de pesada lona encerada para a proteção das mercadorias nos solavancos do caminho.

O senhor de terno desceu do degrau, pôs-se na calçada e, num aceno preciso e rápido do braço direito, chamou a atenção do vendedor que foi conduzindo o veículo até sua porta e ali parou, já saltando do lugar para servir ao freguês. Disse:

“Buon giorno!”

“Que mania a desse italiano dar bom-dia quando já é de tarde”, pensou o comprador.

Das portas das outras casas próximas saíram outros fregueses, tão associados com a chegada do italiano que pareciam até combinados. Mas toda a aparente coreografia desenrolava-se sem qualquer sobressalto ou afetação. Era um movimento natural, regido pela sincronia espontânea do costume.

Ali os fregueses pediam e eram servidos dos produtos caprichosamente feitos na fazendola do vendedor, cujo leite para a fabricação do queijo, a carne para os embutidos, as frutas para a conserva e a cana-de-açúcar da rapadura e a uva da grappa eram também cultivados por seu trabalho e o de sua família, mais dois empregados.

O senhor que envergava o terno claro regressou ao interior da casa guarnecido de excelentes conservas e do bom queijo, tendo antes deixado uma nota de cinquenta mil-réis e mais algumas moedas que foram parar na algibeira do italiano, provavelmente pelo pagamento de compras passadas. Era assim naqueles tempos: ia-se comprando para pagar no fim do mês.

Ao entrar, já sentia o cheiro de um delicioso café vindo da cozinha, da qual sua esposa saía acompanhada da empregada que carregava uma cesta de pães e biscoitos que haviam sido também comprados naquele dia, com a diferença que o italiano da carrocinha só passaria de novo dali a uma semana, enquanto o padeiro, que também saía distribuindo o fruto de sua fabricação pela pequena cidade, fazia duas rondas diárias.

Algumas horas atrás podia-se ter notado o cheiro emanado das casas da vizinhança pela hora do almoço, onde o tempero dos arrozes, a banha quente dos torresmos e a fritura dos bifes se confundiam no ar a partir de umas 11h da manhã para as famílias almoçarem a partir de meio-dia, que era quando maridos regressavam do trabalho e filhos vinham da escola.

Era uma manifestação coletiva que ninguém havia combinado, a demonstrar o ritmo da vida na cidade. Também por aquelas horas as crianças, retornando do educandário, enchiam a rua com seus uniformes ainda impecáveis e o dedicado funcionário municipal ultimava a varrição da bonita praça da qual estivera cuidando desde as primeiras horas da manhã. E vinha a tarde modorrenta.

Mais tarde, após a refeição vespertina, que se repetia em várias daquelas casas, era certo que se veriam algumas senhoras na janela, conversas aconteceriam nas calçadas e, invariavelmente, crianças brincariam na praça e casais de namorados por ali passeariam, vigiados pelos mais velhos e de olhos brilhando.

Tudo se repetiria de igual maneira nos outros dias, a não ser que houvesse festa na igreja, que arrematava a praça no lado oposto ao das casas, ou se chovesse.

Os acontecimentos dar-se-iam com regularidade, mais ou menos às mesmas horas, mas nada, absolutamente nada naquele cenário era tão preciso quanto a aparição do italiano, no seus habituais dia e horário.

Certa feita, no dia da passagem do italiano – seu nome era Raffaello Botti – os fregueses esperavam e ele não apareceu. Entreolharam-se curiosos e, pergunta daqui, pergunta dali, houve rumores de que ele estava gravemente enfermo e não saíra da fazendola por aqueles dias.

O homem do terno, um de seus mais constantes fregueses, julgou ser questão de lealdade ir até a propriedade rural conferir o que se passava.

Ele e um vizinho, dono de um Ford 1936, combinaram de partir para esta diligência às 9h do dia seguinte, o que fizeram vencendo rapidamente poucas léguas, rodadas em estrada razoável, até o local da família dos laboriosos imigrantes.

Lá chegando, realmente constataram a doença do chefe da família, mas era coisa boba, não havia de ser nada e logo estaria recuperado, afirmou a esposa, Constanza. Mesmo assim, os visitantes ficaram preocupados e ofereceram seus préstimos, bem como providenciar a vinda de um dos dois únicos médicos em exercício na localidade para assistir ao trabalhador.

Não querendo incomodar, o fazendeiro agradeceu recusando a gentileza dos amigos fregueses. Que já estava se sentindo forte e convalescia, mas, se precisasse, contaria com os cuidados do doutor.

Ah, a imprevidência… Em vez de realmente melhorar, o estado de saúde do italiano piorou e, dois dias depois, pelas 10h da noite, Botti deu seu último suspiro cercado da esposa, dos filhos e dos dois empregados. Nem deu tempo de vir o médico.

Logo no dia seguinte, a notícia chegou à cidadezinha e a muitos entristeceu.

Na quinta-feira seguinte, dia em que seria a passagem do finado pela rua para a venda dos seus produtos, já avisavam da missa de sétimo dia que se realizaria ali perto, na igreja matriz da praça.

Às 3h57 da tarde, o senhor de terno pegou-se, inadvertidamente, descendo o degrau do vestíbulo em direção à saída da casa para a calçada, num ato subconsciente e automático, quando, de repente, lembrou-se que o vendedor itinerante já virara história.

Deu um suspiro de desolação, um breve resmungo e falou para ninguém ouvir:

“Pois é, foi-se meu Patek Philippe.”

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