Na época em que Sarah Munck começou a brindar os leitores de Notibras com poemas e ensaios, ela comentou comigo sobre Graci Apolinário, poeta, também mineira e professora, e do projeto de produção de literatura com seus alunos privados de liberdade.
Fiquei bastante interessado e fui me inteirar da dinâmica desse projeto. Tive, então, o prazer de travar contato e conhecer uma autora generosa e pessoa gentilíssima, que me presenteou com um exemplar de “Por Dentro”, seu livro de poemas, no qual, em versos leves e rápidos ela revela seu caminho de autoconhecimento.
Pedi-lhe uma entrevista para Notibras, a qual foi concedida por e-mail no mês de janeiro de 2025. Já publicada aqui no Café Literário, desta vez os leitores terão a oportunidade de melhor conhecerem Graci:
Qual foi o processo de criação do livro “Por Dentro”? Quais temas e emoções você explorou?
O processo de criação de “por dentro” foi mediado pela minha busca do autoconhecimento. De acordo com que a minha experiência pessoal foi se expandindo (principalmente através do processo de análise) o acesso aos meus sentimentos mais profundos foram ocorrendo de uma forma natural e a literatura somou a isso, porque essa arte é uma das maneiras que me ajuda a perceber o mundo. Então, adepta da palavra que sou, comecei a explorar o caminho da autoficção. Nos versos, de uma forma mais elaborada, porque já escrevo desde os 12 anos mais ou menos, foi a forma que encontrei de transpor minhas sensações mais íntimas para o papel, por isso escolhi a poesia. No livro publicado em agosto de 2024 é possível encontrar poesia sobre sentimentos inerentes a todo ser humano, que podem ser vivenciados por nós a todo momento de nossas vidas, como o luto, o amor, a dor, ansiedade, vazio, entre outros que permeiam meus escritos, oferecendo uma oportunidade para que o leitor se reconecte com suas próprias emoções e sensações, que são universais. Assim, cada poema se torna um espelho que reflete não apenas a mim, mas também os sentimentos que me conecta aos leitores.
Como sua experiência como professora influenciou sua escrita e abordagem poética?
Eu também leciono literatura e minha formação colaborou muito para um estudo mais atento para o que antes era somente um hobby. A escrita deixou de ocupar somente o lugar de prazer na minha vida e me deu a possibilidade, a partir da sala de aula, de revisitar obras literárias que amo de forma mais sistematizada e ainda descobrir novas que me são apresentadas pelos alunos. Sob o ponto de vista do processo criativo, acredito que a formação em Letras me auxiliou no desenvolvimento dos aspectos cognitivos mentais necessários para a função da escrita que mesmo realizando desde mais nova eu não possuía e desenvolvi após a faculdade, o que acontece agora é que após dominar já alguns aspectos fica mais fácil transitar por esse meio, mas é importante lembrar que não existe um fim, sempre há mais coisas novas para aprender.
O que a motivou a desenvolver oficinas literárias com alunos privados de liberdade em Santos Dumont?
Eu tenho um curso de redação on-line chamado Curso RED (@cursored.oficial). Em 2022, criei duas oficinas de criação literária com o objetivo de integrar aulas de escrita criativa ao meu curso. Durante esse processo, percebi que poderia usar um conto de uma das oficinas para gerar um bate-papo nas minhas turmas da Unidade Prisional. O conto escolhido foi “Maria”, do livro Olhos d’água da Conceição Evaristo, que aborda temas sociais relevantes e comuns entre as pessoas nas UPs. Para minha surpresa e satisfação, os alunos se identificaram profundamente com a personagem Maria. Considerando que a escola nas unidades é um meio de ressocialização, decidi adaptar as duas oficinas para o cronograma escolar, uma vez que até então a atividade se limitava a uma aula de interpretação. Assim, comecei a aplicação das oficinas. Desisti de implementá-las no meu curso e, ao invés disso, apliquei-as por dois anos consecutivos na UP de Santos Dumont (2022 e 2023). Consegui um financiamento do fundo social pela SICREDI para publicar um livro com os alunos. Nesse momento, já tinha um projeto escrito e direcionado para a unidade. Em 2024, reimprimi o livro com o apoio da editora AUTORIA e de empresários sandumonenses, distribuindo-o à população. Continuei o trabalho de leitura e escrita com os alunos através das oficinas, fortalecendo o vínculo deles com a literatura. Agora, em 2025, vou executar as oficinas pelo quarto ano consecutivo e terei a oportunidade de publicar os trabalhos com o incentivo da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), que captei no final de 2024 — uma notícia de primeira mão nesta entrevista. Narrei essa história para mostrar como tudo começou de forma natural. Percebi que posso colaborar com populações vulneráveis através do meu conhecimento, alcançando-os por meio do diálogo e da literatura. Meu objetivo é ajudá-los a iniciar uma reflexão que pode levar a transformações em suas vidas, reconhecendo que as oportunidades não são iguais para todos, mas mesmo assim é possível construir uma boa história.
Como foi a experiência de trabalhar com esses alunos e ver suas histórias se transformarem em literatura?
Posso dizer que duas palavras descrevem minha experiência de trabalho com educação para privados de liberdade: humanidade e disciplina. Não é um trabalho fácil, é um lugar que na maioria das vezes é visto com hostilidade por diversos motivos, mas é preciso lembrar que ele existe e que boa parte das pessoas que estão lá dentro irão retornar para a sociedade. Compreender esse processo junto com o respeito pelas esferas judiciais e penais é essencial para o bom andamento do trabalho. Dito isso, acho importante ressaltar que a cada dia lecionando lá é um aprendizado diferente, são lições de vida que me leva a reafirmar e rever valores. Em relação ao Projeto Jovens Escritores realizado lá, as oficinas é de autoficção e ficção e acredito que a história desses alunos começa a ser transformada no momento em que eles decidem se dar uma nova chance a educação, pois a maioria do cárcere brasileiro é defasado em relação a ensino e evadiu da escola. Eu dou muito crédito ao papel da educação porque se a minha realidade que é completamente diferente da deles eu já considero que a educação mudou, imagina se eles se derem a chance de deixar a educação e a literatura guiar um pouco os passos deles. Talvez eles possam descobrir uma realidade diferente. Quando eu comecei as oficinas eu não imaginava que teríamos um livro publicado e agora vamos para o segundo livro. Eu costumo dizer que aqui fora as pessoas sempre estão inventando desculpas para não se entregar aos processos criativos, é sempre um compromisso, muito afazeres, mas lá dentro a literatura pode ser algo que tira privados de liberdade de uma prisão mental que acaba sendo algo pior que a prisão física (me atrevo a usar estas palavras por ser temas que os próprios presos já me relataram nas oficinas e dizer que a literatura preencheu o tempo deles). E um fato é que participar da minha oficina não muda o destino dessas pessoas se elas não decidirem mudar, mas a partir do momento que através de novos hábitos estes são levados a reflexão sobre uma mudança positiva para sua vida, eu considero ter ajudado com a sementinha no processo de mudança. É assim que eu acredito que o projeto funciona. Até porque não é mágica e não tem como mudar o mundo sem o esforço de cada um! Eu vejo que algumas mudanças já ocorreram desde o primeiro ano de oficina: todos os alunos em sala de aula sempre participam, os alunos leem mais, biblioteca rolante a cada 15 dias voltou a funcionar, a procura de matrículas na escola aumentou, a coragem de publicar dos encarcerados. Eu espero um dia poder ver movimentos pessoais florescendo como hoje já vejo esses movimentos coletivos.
Como você vê a relação entre literatura e alfabetização?
Acredito em uma relação entre literatura e alfabetização fundamental e multifacetada, pois por meio desta ocorre o desenvolvimento da linguagem, da compreensão crítica, da motivação e interesse, da empatia e identidade, de estratégias de leitura e da construção de conhecimento. Assim, tem-se que a literatura não é apenas um complemento ao processo de alfabetização, mas uma ferramenta vital que enriquece e diversifica a experiência de leitura e aprendizagem.
De que forma sua formação em Letras e pós-graduação em Alfabetização e Letramento influenciaram seu trabalho?
Influencia de diversas maneiras: promoção da leitura, desenvolvimento de projetos no setor escolar e cultural, integração de conteúdos por meio da interdisciplinaridade, compreensão das dificuldades para adaptação de atividades educativas empáticas para os alunos, conhecimento de metodologias ativas eficazes para várias faixas etárias e uma base teórica sólida. Acredito muito em alfabetizar letrando e nas metodologias ativas que consideram, principalmente, o aluno. O ensino contextualizado faz florescer o interesse pela leitura e pela escrita, permitindo que os estudantes se sintam parte do processo educativo. A formação me proporciona ferramentas para criar um ambiente de aprendizado inclusivo e estimulante, onde cada aluno pode desenvolver seu potencial e refletir criticamente sobre suas experiências e a realidade ao seu redor. Essa abordagem não só enriquece a experiência educacional, mas também contribui para a formação de cidadãos mais conscientes e participativos.
Qual é o papel da sua raiz mineira em sua poesia e identidade?
O que trago forte em mim do meu país Minas Gerais (risos) é a simplicidade do interior que me afaga constantemente. A alma que gosta de poesia precisa de um carinho e a paisagem mineira me dá muito isso. Eu sou apaixonada pela natureza, quando estou perto dela me sinto revigorada, imagina ter acesso constantemente a cadeias montanhosas maravilhosas e cachoeiras que mais parecem desenhadas por Deus. Gosto tanto daqui, principalmente do interior onde vejo meninos brincando na rua, soltando pipa, as pessoas sentando para conversar do lado de fora de casa, são coisas que me encantam. Eu não escrevo necessariamente sobre esses fatos, mas os sentimentos que me atravessam ao observá-los, diversas vezes já fui para lugares públicos escrever porque precisava da energia daquele lugar no meu processo.
Quais projetos futuros você tem em mente para sua carreira literária?
Para o ano de 2025 quero, principalmente, me concentrar na divulgação do meu livro “por dentro”. E em relação aos projetos sociais, até o meio do ano será finalizado o segundo livro com os alunos da Unidade Prisional, um fruto do Projeto Jovens Escritores. E se tudo der certo darei continuidade a um outro projeto que iniciei final do ano passado (2024), Encontros com a Literatura, esse tem a intenção de democratizar a literatura através de conversa com autores e distribuição de livros para a população. Gostaria de em 2025 conseguir realizar todos esses.
Onde sua obra se encontra disponível?
A obra está disponível diretamente com a autora, na Autoria Casa de Cultura em Juiz de Fora – MG, na Banca do Zezé em Santos Dumont – MG e no formato e-book pela Amazon.
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Recadinho da Gracie: Daniel, gostaria de agradecer pela entrevista, passear por essas memórias foi um presente e sou grata por ele. Parabéns, pois ser professor já é uma profissão admirável e junto a isso ampliar a área da literatura ampliando vozes é um trabalho sensacional, merece também muita estima e aplausos. Obrigada!
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Daniel Marchi, editor-adjunto do Café Literário, é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com