Notibras

Povo que elege com folga é o mesmo que expurga com louvor

Como disse e repetiu um mito da Música Popular Brasileira, o artista tem de ir aonde o povo está. Como no futebol, essa regra é clara. Os números não perdoam quando o astro da companhia resolve fugir da norma e cantar ou interpretar somente para a meia dúzia de fãs fanatizados pelas baboseiras que ele produz. Aí, fica claro quem manda. O povão, também chamado de eleitor, não perdoa. A corda começa a apertar, o calo passa a doer, a honestidade escoa pelo ralo, as raspadinhas aparecem, os adjetivos povoam o imaginário popular e a suposta popularidade desce ladeira abaixo. Nada pior do que isso para qualquer ser humano que sonhou um dia ser coroado rei de um país de faz de conta. Talvez uma nação de ficção, na qual o imperador não admite ser contrariado ou que algum de seus súditos tenha posição antagônica.

É o Brasil de hoje. É o arremedo de pátria que será entregue ao próximo governante. Desde que seja realmente entregue, tudo bem. O risco é que a pouca inteligência, o despreparo, a indecisão, a incompetência e o autoritarismo sejam transformados em golpe eleitoral. Aliás, parafraseando o desrespeito do próprio comandante, que, com seu vocabulário escatológico, disse ter “cagado para a CPI”, a aprovação da administração em curso é como rolo de papel higiênico: diminui a cada uma delas. O novo jargão oficial foi em resposta a um singelo ofício do presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), requerendo de sua excelência a confirmação ou negativa da denúncia do deputado Luiz Miranda (DEM-DF) e do irmão, Luís Ricardo Miranda, servidor do Ministério da Saúde, sobre supostas irregularidades na compra da vacina Covaxin. O documento também pedia informações a respeito do envolvimento do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR).

Apenas isso. Preferindo “cagar” para a solicitação, esqueceu que até os apóstolos deviam obediência ao irmão Jesus, que nada fez sem a anuência de Deus, o Pai de todos. Blasfêmias à parte, a verdade é que nunca antes na história deste país um governante esteve tão acuado por conta de uma denúncia. Repito, acuado. É claro que pelo menos outros quatro sofreram devassas piores. Ocorre que nenhum deles tinha atestado de honestidade registrado em cartório. Eram políticos e política normais, consequentemente sujeitos a erros como qualquer mortal. Jamais disseram que nunca fariam nada para manchar a imagem do país. Fizeram, mancharam, não se arrependeram, foram perdoados – não inocentados – e alguns continuam nos representando no Congresso Nacional.

Outros tentam voltar e, se não houver um cataclisma, certamente voltarão. Não tenho respostas para isso, mas o povo gosta de quem é honesto até na desonestidade. Quem sabe um dia Freud ressuscite e nos dê uma explicação a respeito desse carinho popular com falta com a verdade. Mais uma vez sou obrigado a recorrer à máxima do imperador romano Júlio César. Em 62 a.C, mesmo sem provar a traição da esposa Pompeia, ele pediu o divórcio sob o singular argumento de que “a mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. O preço do pouco caso com o Parlamento, dos arroubos contra as instituições e do ódio com o povo que não o quer mais não é baixo. Com dezenas de pedidos de impeachment para impedir, a dependência do Centrão de Arthur Lira (PP-AL) e de Ricardo Barros e o declínio nas pesquisas devem custar caro.

Na prática, o mito está entre a cruz ameaçadora do afastamento e a espada afiada do povo em outubro de 2022. Livrar-se da ameaça depende do humor dos integrantes do blocão do toma lá, dá cá, muitos deles atolados até a alma no lamaçal da corrupção. Ainda mais difícil será a recuperação do prestígio para retomada da temporada de caça aos votos. Haja o que houver e mantidas as investigações sobre desvios de conduta contra o governo, impossível imaginar uma campanha oficial capaz de limpar, lustrar e perfumar a forma de fazer política responsável pela eleição do atual governante. Em síntese, o povo que elege com folga é o mesmo que cobra e expurga com louvor.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

Sair da versão mobile