Depois da gripezinha, da eleição de Joe Biden, do retorno do Centrão ao cotidiano político, da falta de vacinas, das novas variantes da Covid-19, da liberação das armas de fogo, do fim do auxílio emergencial, do churrasco gaulês de picanha e do lombo de bacalhau à portuguesa para oficiais, suboficiais e recrutas das Forças Armadas, o que de ruim ainda falta acontecer ao Brasil desgovernado? Até quando nos permitiremos ser enganados a cada quatro anos? Até quando tomaremos sempre nas costas, mais precisamente no orifício corrugado? Difícil responder quando não temos horizonte, quando não temos coordenação, quando nos falta oxigênio e quando já enterramos 239.245 brasileiros, de um total de 9.834.513 de infectados. Estamos ao Deus dará.
Definitivamente, o Brasil e seu povo não precisam de armas, tampouco de gastos desnecessários com supérfluos. O que queremos é um presidente preparado, tolerante e capaz de resolver problemas simples, mas determinantes para a vida. Entre as soluções mais urgentes, a principal deveria ser a compra de insumos e imunizantes contra um adversário invisível e mortal como o novo Coronavírus. Deveria, mas – ainda não explicaram as razões – o povo permanece entregue à própria sorte. Prova disso é que, dois meses e meio após o governo assumir como sua a vacina trazida ao Brasil pelo Instituto Butantan, do governador João Dória, não conseguimos chegar a 3% de imunizados. Os contrapontos são Israel e o Reino Unido, com cerca de 50% da população vacinada, e a União Europeia e os Estados Unidos, com imunização próxima dos 10%.
Apesar disso, a preferência do governo e do Centrão foi a liberação das armas e as negociações para uma nova fornada do fundamental, embora desonesto, auxílio emergencial. Por que desonesto? Porque está claro que o objetivo não é matar a fome de milhares de brasileiros, mas sim se cacifar politicamente para a reeleição em 2022. Então, se o povo tem fome, qual a razão das armas? Nunca tivemos vocação para guerras. Jamais nos imaginamos invadindo os vizinhos sul-americanos. Nem mesmo a Venezuela, que, por questões puramente ideológicas, tem-nos obrigado a incorporar sentimentos sabidamente primitivos, entre eles o ódio.
Por isso, insisto no questionamento. A quem interessa a liberação das armas? Lamentavelmente ao tráfico e às milícias. O problema maior é saber quem ou o que esses segmentos financiam ou a quem agrada um arsenal em mãos de criminosos. Certamente não é ao povo. Faz pouco mais de dois anos paramos de pensar como país rico e pujante. Hoje, os mandatários agem como grupos, como nação familiar. A verdade mais crua é que deixamos de ser prioridade para o governo doutrinário de Jair Bolsonaro. Estão nessa lista de abandonados os tupiniquins, que rezam por cartilhas diferentes, atualmente maioria esmagadora do eleitorado brasileiro.
Fora da lista, os doutrinados do rebanhão continuam aceitando tudo como verdade, sem querer a vacina e, por conta disso, morrendo antes do tempo e não experimentando os desprazeres ofertados diariamente pelo chefe do Executivo federal. Claro que, com a segunda onda da pandemia, existem os que mentem, rejeitam o doutrinamento, são vacinados às escondidas e permanecem vivos. Sem vacina e sem data definida para ampliar a imunização da população, voltamos a sentir o mesmo medo de meados de 2020, período em que o capitão iniciou campanha particular contra qualquer imunizante. Esse sentimento ficou ainda mais notório na sexta-feira, véspera do carnaval inexistente, quando, no apagar das luzes do Palácio do Planalto, o presidente da República editou quatro decretos ampliando o acesso a armas e munições.
O argumento de Bolsonaro para edição dos documentos é a necessidade de armar a sociedade contra a bandidagem. Para qualquer leigo, claramente os decretos não são nada republicanos. Na avaliação de 99,9% da população, o resultado será a geração de verdadeiros arsenais para foras da lei e o esvaziamento do Estado sobre a matéria. Sabidamente o povo brasileiro é ordeiro, brincalhão e pouco afeito à violência. Assimilou bem isso após a proposta de ruptura do presidente, que comandou e assistiu o rebanhão alijar da condição de patriota, de nativo, todos aqueles que ousaram – e ousam – divergir do bolsonarismo. Bons e dignos de brasilidade são os ideológicos extremados. Para os que usam a sensatez, a tolerância e a lógica na solução de imbróglios políticos sobram a forca e a masmorra.
Nem precisamos viajar muito no tempo para chegarmos às novas cepas do vírus, as quais, mais do que antes, exigem reações urgentes, vacinação veloz e rapidez nas decisões. A vacina é o caminho mais seguro para o país voltar à normalidade e deixar de ser execrado na maior parte do planeta. Só o governo de Bolsonaro não percebe ou não tem interesse em perceber isso. A projeção para o futuro é celebrar a vida. Portanto, não é demais pedir ao presidente que repita com a imunização do povo a agilidade que teve com o liberou geral das armas. E a liberação não é apenas simbólica. O Supremo Tribunal Federal provavelmente será chamado a se manifestar sobre os decretões nada republicanos da bala. Enquanto isso não ocorre, a obediência cega e incondicional continuará sendo à vida. O povo, senhor presidente, não precisa de armas. O povo quer vacina. E já. Agradando ou não ao capitão, a imprensa canalha permanecerá divulgando os números. O orifício corrugado não aguenta mais.
*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978