Marcelo sentia ainda a brisa salina do mar em seu corpo, e era como se tivesse areia entre os dedos de seus pés. Fixara na mente a paisagem, onde via o ondulado azul até longe, perdendo-se dentro de brumas espessas. A encosta repleta de árvores ainda estava vívida em sua mente e, entre as ondas, que morriam umas sobre as outras, e a montanha, a praia intocada sobre a qual, de espaço em espaço, viam-se pequenos barcos humildes de pescadores locais repousados sobre a faixa de areia. Minutos antes, vira sua amada. O corpo moreno e robusto, um sorriso familiar, os olhos inigualáveis, os cabelos em desalinho porque agitados ao vento. Ela estava encostada num daqueles barcos e dizia para ele, questionando-lhe entre brava e carinhosa:
— Por que você ficou tanto tempo sem vir me ver? Eu estava com saudades. Promete, por favor, que não faz mais isso?
E, ao falar a última frase, ela pousou ambas as mãos sobre os ombros de Marcelo, aproximando-o delicadamente de si. Marcelo encostou o rosto ao dela e sentiu, por um momento, seu coração bater forte, de um jeito diferente. Era como uma emoção há muito tempo não sentida, que possuía todo o seu ser.
De repente, acordou. Estava em seu quarto, na cidade cinza. A paisagem ao descerrar as cortinas, em vez do mar, revelava apenas uma longa fila de edifícios. Aberta a janela, nada de ruído das ondas, mas apenas o movimento frenético das avenidas intermináveis e da vida indiferente das pessoas lá fora.
Mas como? De quem se tratava a mulher do sonho? Era como se ainda pudesse sentir o seu perfume, as pontas de seus cabelos, agitados pela brisa, tocarem levemente seu rosto. Quase podia sentir ainda sua respiração. A voz suave impregnara todo o seu ser.
Marcelo foi invadido por uma saudade imensa, como se estivesse há muito tempo distante da mulher com quem sonhara. Por ela nutria um amor genuíno, que séculos ou distâncias seriam incapazes de modificar. Tentou se lembrar de maiores detalhes do sonho, de como chegara à costa paradisíaca e remota, mas não conseguiu. Teve medo de que fosse, aos poucos, perdendo os detalhes da onírica viagem, como diversas vezes lhe acontecera com sonhos agradáveis que remontavam fatos da própria vida. Mas jamais nenhum deles trouxera essa estranha sensação de realidade, de nostalgia, de que em algum lugar estivera, de fato, com a mulher do sonho, e o amor que lhe tinha era verdadeiro.
Sentiu que precisava encontrá-la de alguma forma. Mas como o faria, exceto no território inconstante e fugidio do sonho? Por momentos, ficou tentado a não se levantar, simplesmente abandonar a ideia de cumprir os compromissos do dia e deixar-se ficar na cama. Voltar a dormir e, quem sabe, encontrar novamente sua musa morena. Não sabia bem se era a imaginação que lhe pregava peças, ou se possuía realmente memórias dela inteira. Dos pés ao ventre, coberta por uma saia diáfana e antiga. Da cintura ao colo, uma blusa simples, artesanalmente tecida de algodão. Seus braços roliços e a cor única de sua pele, curtida pelo sol inclemente da praia. Toda ela se constituía numa ilusão tranquila, e doravante constituía-se no amor caiçara de Marcelo. Mas em que praia morava? Era do tempo presente, ou uma mera visão do passado?
Marcelo conformou-se com o mistério e optou por encarar a vida. Talvez nunca voltasse a sentir tanto amor e tanto desejo por um ser, como aquilo que sentiu nos poucos instantes do sonho matutino. Levantou-se e foi trabalhar. Quando, exausto, voltou para casa à noite, após reunir-se para uns drinques com amigos do escritório, sequer se lembrava das sensações que mais cedo experimentara. E assim se passaram vários dias, sem qualquer contato com a mulher misteriosa do sonho.
Algumas semanas depois, no entanto, viajou num feriado para pequena cidade litorânea onde um primo havia alugado uma casa e o convidara. Passeando pela praia, de repente, voltaram-lhe todas as sensações intensas do sonho, porque reconhecera o local onde encontrou a caiçara. Na orla havia construções modernas, a encosta oposta ao mar não era mais tão arborizada, mas teve a certeza de que era ali, e reviveu todos aqueles momentos como que revendo um filme antigo que lhe passava pela memória.
Sentiu uma certa angústia, pois estava convicto de que tudo não se passara de ilusão. Mas, desta vez, a intensidade do amor e da saudade não lhe abandonaram, e os dias que se seguiram foram tristes, melancólicos, com tom de despedida.
Só se alegrou novamente quando, retornando à rotina, sonhou de novo com o mesmo cenário. Desta vez, era conduzido por sua amada que, segurando firmemente sua mão, levava-o para um local fora da praia. Iam andando e todas as sensações estavam presentes. O vento, o sal, o sol, a intensidade da paixão. No caminho, ela falava:
— Vem, vem que eles estão nos esperando. Precisamos definir logo como será.
Não conseguia captar o sentido dessa fala. Não sabia a que a mulher se referia, mas acompanhou-a com confiança. Até que penetraram em pequeno casebre, onde se encontrava um casal. Eram, certamente, os pais de sua amada. Marcelo observou em detalhes a simplicidade do local, que parecia pertencer ao passado distante. Queria dizer alguma coisa para aquelas pessoas, mas faltavam-lhe palavras. Olhou novamente para a moça e… Acordou de repente.
Marcelo ficou tão desapontado que chegou a gritar irracionalmente. Uma expressão de raiva. Novamente um sonho inconcluso. O que será que planejavam ao entrarem, juntos, na humilde casinha?
Daquela vez, as sensações vividas não foram esquecidas, e acumularam-se as de ambos os sonhos. E a vida de Marcelo passou a ser de permanente expectativa da hora do sono, para tentar sonhar novamente com a mulher que amava desesperadamente, e de quem sentia uma intensa saudade.
Esporadicamente, os sonhos vinham, sempre de modo diferente. Ora conversavam sentados em volta de uma mesa tosca, sob a luz oscilante de uma vela, ora olhavam juntos a paisagem marinha, admirando o horizonte claro. Outra vez, Marcelo encontrava-a agachada, sob uma sombra, a coser uma rede de pesca, o cabelo amarrado atrás, o sorriso aberto, o contorno dos ombros e a sensualidade de uma gota de suor que lhe escorria pela nuca.
Durante o sonho, a sensação era de que os momentos com a amada eram eternos, e neles não cabia qualquer ansiedade ou temor de separação. Mas, ao acordar abruptamente desses episódios, ficava triste, porque eram momentos tão preciosos, porém tão breves.
Marcelo, que era agnóstico e cético, jamais pensara em reencarnação. Mas, um dia, leu algo a respeito e pensou que os sonhos eram lembranças de outras vidas. Isso o desanimava, porque, se fosse verdade, nunca mais veria, na vida real, a mulher que amava e de quem sentia falta em todos os momentos. Pensou, também, tratar-se de uma construção do inconsciente, e procurou meditar sobre o significado daquela mulher e dos sonhos em sua vida, que agora sentia incompleta e vazia.
Às vezes mais frequentes, noutras mais espaçados, os sonhos se repetiram. Em um deles, andava a esmo por lugares antigos em busca de sua amada, que lhe pareciam familiares, e entrava em desespero quando não a encontrava. Diversas vezes, Marcelo retornou à cidade litorânea onde, tinha certeza, situavam-se as paisagens e locais vistos junto de sua amada, e até pensou haver localizado o sítio onde estaria o casebre no qual, talvez, ela morasse. Mas não teve certeza, alguns pontos na vida real eram bastantes distintos dos sonhos, por mais nítidos que estes fossem.
A certa altura, Marcelo passou a questionar a própria sanidade, pois não queria mais viver na realidade, mas apenas no plano onírico, onde, sem dúvida, continuaria encontrando a mulher que era objeto de sua devoção e todo seu interesse. Os acontecimentos da vigília já lhe eram estranhos e enfadonhos, embora não soubesse bem se, no plano onde encontrava a amada, ele era a mesma pessoa ou algum ser diferente. Se fosse o Marcelo da realidade, da vigília, ela o quereria assim mesmo?
A vida de Marcelo continuou sendo uma sucessão de dias vazios, em busca da hora do sono. O sonho lhe confortava completamente, pois era quando, ocasionalmente, conseguia estar com a mulher que a tudo dava sentido e cor. Preenchia seu ser de alegria e contentamento.
Algumas vezes, pensou tê-la visto de longe, no mundo real, andando num ônibus ou cruzando alguma esquina da movimentada cidade.
Teve o ímpeto de correr, chamá-la, gritando a plenos pulmões, mas o impulso era refreado pelo fato dele sequer saber seu nome.
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