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“Prender no Brasil é manter privilégio da branquitude”

A chacina do Jacarezinho – operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, que matou 28 pessoas – aconteceu em plena pandemia, enquanto as operações policiais em favelas cariocas estavam proibidas por ordem do Supremo Tribunal Federal. Em meio à grande comoção nas redes sociais, viralizou um vídeo em que um homem que cresceu na favela descreve, abalado, o cenário de guerra causado pelo massacre. “É muito cruel passar na rua onde você brincou, sentou na calçada pra conversar com os amigos e viveu, e ver uma dezena de marcas de tiros na porta de um bar, na porta de uma loja de cosméticos, cano estourado, balas e balas no chão. (…) A gente não merece viver em um cenário de guerra, não é justo”, diz.

O homem que aparece no vídeo é o advogado criminalista Joel Luiz Costa, que, na sua prática cotidiana, busca transformar um sistema de justiça que, em diversas frentes, controla, oprime e exclui a população negra, como diz em entrevista exclusiva à Agência Pública.

“85% das pessoas que compõem o sistema de justiça são brancas, e 65% das pessoas que compõem o sistema prisional são pretas, então você tem pessoas brancas prendendo pessoas pretas”, explica. Essa disparidade foi um dos motivos que o levou a fundar o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), que ajuda jovens advogados e advogadas negros a entrar no mercado de trabalho, além de oferecer serviços jurídicos gratuitos para pessoas negras.

Costa argumenta que criminalizar condutas e prender pessoas não são medidas que resolvem os problemas sociais e históricos do Brasil, como o racismo e a desigualdade social. Por isso, ele banca a afirmação polêmica de que “soltar bandido é melhor do que prender”. “Eu não tô aqui pra botar mais pessoas na terceira maior população carcerária do mundo, eu tô aqui pra diminuir a terceira maior população carcerária do mundo e construir novas formas de organizar, de regular e de resolver os problemas sociais.”

Apesar da revolta contra a chacina do Jacarezinho, ele acredita que a sociedade continua legitimando a violência policial. E argumenta que não adianta nada encarar traficantes como “inimigos de Estado”, pois eles são, em sua maioria, jovens negros, periféricos, com famílias desestruturadas, que entram no tráfico para compor sua renda, já que raramente conseguem um emprego no mercado formal. “É desse moleque que eu quero falar porque foi ele que morreu na chacina do Jacaré, e na manhã seguinte entrou outro no lugar dele”, explica.

Joel Luiz Costa foi escolhido para essa entrevista exclusiva pelos Aliados da Pública, que também participaram da conversa enviando suas perguntas. Leia trechos a seguir:

Infelizmente as operações policiais violentas que causam mortes em favelas são frequentes no Rio de Janeiro e no Brasil. Mas a operação que aconteceu no Jacarezinho foi muito criticada na mídia e causou grande comoção nas redes sociais. Por quê? Essa operação teve alguma coisa de diferente? 

Sim, acho que foi porque ela teve 28 mortes. É um recorde, a maior chacina registrada, por isso a grande repercussão – e não necessariamente por uma leitura negativa da atuação do Estado, que regularmente exerce a letalidade em territórios de favela.

Você pode interpretar isso a partir do que acontece posteriormente. Convenhamos, [após a chacina do Jacarezinho] o que mudou na estrutura e no projeto de segurança pública apresentados pelo estado do Rio de Janeiro e pelo Governo Federal? Se nada mudou no dia seguinte, a minha leitura é que a resposta do tecido social foi essa: “Poxa, dessa vez vocês exageraram, hein? Peguem leve na próxima.”

Se as mortes no Jacarezinho não tivessem acontecido durante uma operação policial, o que teria acontecido com quem cometeu esses crimes? Por que existe essa diferença de tratamento se quem pratica o crime é um civil ou um policial? 

Primeiro, há uma cultura de legitimação da violência do Estado, da violência policial. Há um falso paralelo de que, ou é assim, ou não é combate ao crime – o que é totalmente errado. Outros países mostram que há várias formas de combater a criminalidade sem cometer crimes para tanto.

Um outro ponto é que há uma desumanização dessas pessoas [que moram em favelas], com a consequência até mesmo de se aceitar a morte delas. A depender de onde ocorre determinado crime, ele vai ter mais ou menos interesse da sociedade em termos de resolução, correção e não repetibilidade. Se a tragédia ocorre em um território de periferia, majoritariamente de população negra, há uma relativização. “Ah, tá tudo bem, ali é um lugar que sempre tem [violência]” ou “A polícia mata quem tem que matar, o bandido.” E quem é o bandido? A gente tem no subconsciente que é um jovem de periferia, negro, trajado de tal forma. Mas isso não é uma coisa que você aprende na barriga da sua mãe, é uma construção social e contínua, amparada no Estado e também na mídia, no debate do cotidiano.

Há um conjunto de elementos que fazem com que a sociedade leia diferente um crime cometido pelo bandido e pelo suposto mocinho. O policial mata o bandido, que é a maior praga da nossa sociedade. “Ah, se for o policial tá OK.” Mas se o policial também comete crimes e não respeita as leis, ele é tão bandido quanto o bandido que tá no tecido social, na favela, no tráfico ou na milícia.

Tem uma questão que é muito anterior ao próprio crime cometido, que é a pessoa e onde ela se posiciona dentro da estrutura social brasileira. Quando o Eike Batista volta do exterior para se apresentar pra polícia na Lava Jato, tiram selfie com ele no aeroporto. “Ah, ele é um megaempresário, então ele não pode ser bandido.” Mas se um moleque da periferia pegou um Iphone e saiu correndo, “vamo matar esse moleque. Como assim ele vai atentar contra o meu Iphone?”

O Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), que você coordena, está oferecendo assistência jurídica gratuita para os familiares das vítimas da chacina do Jacarezinho. Já teve algum processo contra o Estado? 

A gente presta essa assistência até hoje pras famílias que demandaram o nosso auxílio, dentro de uma política de confidencialidade para preservá-las, já que elas não querem exposição. O IDPN tá participando de uma articulação em que a gente vai buscar pela via jurídica uma indenização para o território. Mas é muito difícil colocar o Estado no banco dos réus, é um Davi contra Golias. Tem toda uma estrutura que funciona para que isso não aconteça. Você não tem um Estado que sirva para a sociedade, ele se serve da sociedade, então ele não é cobrado a dar respostas.

A própria ADPF 635, a famosa “ADPF das favelas” [que levou o STF a impor limites às operações policiais no Rio de Janeiro] é um case de sucesso, mas mostra como atuar contra o Estado é difícil. Ainda que a gente tenha ganhado na disputa judicial, você tem que cobrar e monitorar a execução, o que é uma outra batalha. Por exemplo, agora o Ministro Fachin mandou que o Ministério Público Federal investigue se o Ministério Público Estadual acompanhou o cumprimento da liminar da ADPF. Então é uma batalha muito grande, e os avanços são alcançados lentamente.

A ADPF das favelas já tinha sido aprovada e o STF também já tinha suspendido operações policiais no Rio em meio à pandemia. Mesmo assim, a operação aconteceu. Um Aliado perguntou se a decisão do Supremo teve algum impacto sobre o modus operandi da polícia no Rio?

Sim, os dados mostram que houve uma redução significativa [na letalidade policial] nos primeiros quatro meses após essa decisão. Acontece que a dificuldade de fazer o controle dessas medidas fez com que a polícia começasse a esticar a corda. Na decisão, o Ministro Fachin determina que as operações só aconteçam em caso de excepcionalidade, mas esse conceito não está delimitado, fica uma coisa subjetiva. O controle externo da atividade policial e esse conceito de excepcionalidade deveriam ser acompanhados e analisados pelo Ministério Público, a quem a Constituição de 88 e o Ministro Fachin atribuíram esse poder e esse trabalho.

A gente que estuda segurança pública no Rio pode afirmar com convicção: o Ministério Público do Rio de Janeiro não tem interesse em controlar a atividade policial. Ao não investigar, processar e punir os atores que cometem a violência de Estado, o Ministério Público dá legitimidade para este “esticar de corda”. Se o fiscal que deveria fiscalizar o descumprimento de uma medida jurídica não o faz, aquela medida jurídica perde a eficácia, ou seja, não adianta você dar uma decisão se você não tiver a possibilidade de controlar e verificar se aquilo está realmente sendo cumprido.

Para isso, a gente também precisa de mecanismos para que a sociedade civil organizada acompanhe, regule, cobre e denuncie quando isso não é feito. Isso não pode ser uma atividade exclusiva do Ministério Público, sob o risco da gente vivenciar o que estamos vivenciando nesse momento, que é uma morte por inanição da decisão do Ministro Fachin.

Algumas pessoas também perguntaram como nós, enquanto sociedade civil, podemos ajudar a acabar com a violência policial? 

Você tem um grande número de possibilidades dada a complexidade do tema. Vou dar alguns exemplos sem hierarquizar: vai desde você votar em governadores e em pessoas que não legitimem a atuação violenta do Estado, que não digam que “vão atirar na cabecinha” [como fez o ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel]. Porque se o chefe de Estado e do Estado diz que isso pode ser feito, a polícia vai fazer porque é ele que comanda.

Um outro ponto é a micropolítica de acompanhamento do dia a dia. Se você está vendo a polícia sendo violenta, truculenta ou ilegal com uma pessoa, acompanhar aquele procedimento, registrar, se aquela pessoa for fazer um processo de abuso de autoridade, participar como testemunha…Assim o batalhão responsável por determinado bairro vai saber: “aqui no bairro tem uma população que acompanha a nossa atuação”. Assim você tem um monitoramento da sociedade civil daquela atividade policial. Se todo mundo faz isso na sua rua, no seu bairro, a gente já tem um avanço significativo.O que teria sido do caso George Floyd se não tivesse o vídeo? Nada.

Obviamente tem um limite, se o cara levantar a arma para você, você vai embora. Então você precisa ter um avanço do controle da atividade policial por parte do Ministério Público e uma cobrança regular da sociedade civil dessa atividade do Ministério Público. A gente tem que ter uma triangulação: a polícia atua, o Ministério Público cobra a polícia e a sociedade civil cobra o Ministério Público. A associação de moradores do bairro de Benfica tem que ter autonomia e a possibilidade de chegar pro promotor responsável pela área e dizer: “Olha, o batalhão responsável pelo policiamento do bairro está tendo uma política violenta e autoritária na figura dos policiais tal e tal, e a gente tá aqui denunciando” e o Ministério Público atua a partir disso.

O que a gente tem hoje também é um desinteresse da sociedade civil, né? Se o tecido social não tá nem aí para o que a polícia faz, ela pode fazer o que ela quiser. A gente tem que ter interesse em acompanhar, cobrar e entender que o policial é um servidor do Estado, pago com o nosso dinheiro e que nos deve satisfação.

Muito se fala sobre a extinção da polícia militar e sobre caminhos para reformar a polícia. Que modelo de polícia você acha que deveria ser adotado no Brasil?

Desde o seu início, em 1808, o maior objetivo da polícia militar é a proteção patrimonial. Não à toa ela é oriunda da Divisão Militar da Guarda Real da Polícia, que tinha no seu brasão a folha de café de um lado e a cana de açúcar do outro – as grandes riquezas da época que ela devia proteger. Se ela vai proteger patrimônio, ela vai defender quem tem patrimônio em detrimento de quem não tem. Historicamente, a população negra no Brasil é uma população empobrecida, a quem não é dado patrimônio e a quem a polícia não vai servir. Ou seja, a gente tem uma polícia que já nasce problemática desde a sua concepção, ela não vai alcançar a pacificação social e a resolução igualitária e isonômica de conflitos. Ela vai atender a objetivos específicos de uma elite que defende seu patrimônio.

E nós temos a polícia também como um instrumento de controle de minorias e de grupos indesejados. Não à toa ela age tão violentamente em protestos e manifestações de grupos que não são de apoio ao governo atual do Brasil.

Não dá pra você simplesmente chegar hoje para um oficial de 50 anos de um batalhão de polícia que não recebeu nem a Constituição de 88 e querer que ele receba um debate sobre racismo estrutural, LGBTfobia, homofobia ou qualquer questão correlata. Ele nem entende que somos todos iguais perante a lei, quanto mais que, mesmo todos iguais perante a lei, há grupos que demandam uma proteção específica do Estado pois foram violentados historicamente na constituição desse país.

A polícia que age de uma maneira na periferia e de outra maneira no bairro nobre diz muito bem a qual senhor ela serve. Ela não serve a dois senhores. É um ponto que está antes do debate de reforma, militarização ou unificação. É um debate de concepção. Pra que serve a polícia militar do Brasil? A quem ela serve e para que ela serve? Respondendo essas duas perguntas, pra mim mostra que ela é ingovernável, irreformável, e ela precisa ser extinta e refeita.

Em um perfil feito pelo UOL, você disse que é um “abolicionista penal”. O que quer dizer com isso, e na prática, como seria uma justiça que não pune? 

Não é criminalizando uma conduta ou outra que a gente vai conseguir que a sociedade em larga escala resolva e supere aquele problema. O racismo está criminalizado no país desde a Constituição de 1988 ou desde a Lei Caó. Eu tenho 32 anos e sofro racismo desde o colégio. Então, [a criminalização do racismo] não surtiu efeito, não pode se dizer que hoje o Brasil é menos racista do que era em 1987.

Um outro ponto é que 85% das pessoas que compõem o sistema de justiça são brancas, e  65% das pessoas que compõem o sistema prisional são pretas, então você tem pessoas brancas prendendo pessoas pretas. Isso em um país historicamente racista que tem como seu episódio histórico mais longevo 388 anos de escravidão, e onde você tem, no pós-abolição, uma construção de uma estrutura pra que pudessemos manter a hierarquia racial, com a criminalização do samba, da capoeira, das religiões de matriz africana, [a criação] da lei de vadiagem e também da lei de drogas. Ou seja, historicamente o Estado brasileiro se vale desses mecanismos para controle de corpos negros. Prender no Brasil é uma questão de controle de grupos indesejados, é uma questão de manutenção do privilégio da branquitude.

Dado esse conjunto de fatores, eu não consigo aceitar que essa estrutura punitiva do Estado seja a melhor forma de se resolver conflitos entre pessoas. Para mim, ela não é justa, isonômica, equânime. Se só pessoas hétero, somente homens, somente brancos, somente qualquer outro grupo, estão compondo quem vai dizer se aquilo é bom ou ruim, certo ou errado, verdadeiro ou falso, você não tem justiça, você tem uma posição de um grupo específico. Porque justiça pra mim é igualdade. Então, eu não posso aceitar uma estrutura que se diz igualitária, mas que na verdade é o exercício de poder de um grupo específico.

Você é co-fundador e coordenador executivo do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), que foi lançado no ano passado e tem como objetivo promover a equidade racial no Brasil. Como está sendo o trabalho de vocês? 

A gente atua em dois pilares: prestar serviço jurídico gratuitamente e auxiliar na formação e entrada no mercado de trabalho de jovens advogados negros e advogadas negras. Ter um canudo é bacana, mas a entrada no mercado é muito difícil, sobretudo em um ramo como o direito que segue uma estrutura familiar. Não à toa, o nome dos escritórios no mundo jurídico é sempre um sobrenome.

Já estamos no sétimo mês de atuação da primeira turma, formada por quatro advogados, dois homens e duas mulheres. Eles ganham um aprimoramento profissional a partir de cursos de capacitação e mentorias, e também são formados como entes políticos pelo fato de o IDPN se colocar como um movimento social.

Além disso, acompanhamos casos de litigância estratégica, como a ADPF 635, o caso da chacina do Jacarezinho, súmula 70, proteção aos defensores de direitos humanos no Rio, como em casos de defesa criminal, em que a gente atua fazendo a defesa jurídica no dia a dia dessas pessoas, sempre gratuitamente.

Você também costuma dizer que “soltar bandido é melhor que prender”. Por quê?

A gente tem nesse país uma sociedade racista, desigual, de modo que pessoas negras têm uma pena maior do que pessoas brancas tendo cometido o mesmo delito. Se no Brasil, historicamente os mecanismos legais são para o controle de corpos pretos, uma das formas de controlar, oprimir e excluir a população negra é o processo punitivo.

Então, eu não posso entender que eu tô aqui pra poder botar mais pessoas na terceira maior população carcerária do mundo, pelo contrário, eu tô aqui pra diminuir a terceira maior população carcerária do mundo e construir novas formas de organizar, de regular e de resolver os problemas sociais, e não terceirizar isso para os braços do Estado. Enquanto pessoa negra que teve acesso ao privilégio que é estudar e ao privilégio ainda maior que é a carteirinha da OAB, eu me sinto no dever de que isso volte pra minimizar os danos da violência do Estado.

E aí não é só um Estado que mata, é o Estado que prende. Seja porque prende arbitrariamente, seja porque prende ilegalmente, ou seja porque prende como forma de fazer controle social. Ainda que o ilícito tenha sido cometido por aquele cidadão, se a gente pegar toda a sua história de vida, do que o país proporciona ao excluir ele, seus ancestrais, seus descendentes e ascendentes, aquela prisão se torna injusta, porque não estamos todos iguais perante a lei, não temos todos as mesmas possibilidades, entende? Então sim, pra mim enquanto homem negro e advogado, eu tô aqui pra soltar bandido. Porque pra prender já tem quem faça há 521 anos. Agora, pra soltar, a gente tá chegando há pouco tempo, mas vamos chegar de bondão [risos].

Uma das coisas que você propõe é a justiça restaurativa. Como funciona? 

Eu entendo que a justiça restaurativa, que traz os envolvidos do caso para a resolução do conflito, tende a ser a melhor forma de solucionar conflitos. Primeiro que você dá ao ofendido a possibilidade de falar por si. Hoje, o titular da ação penal é o Ministério Público, e não o ofendido. Além do que a gente já falou, essa terceirização é um dos meus maiores incômodos com o sistema de justiça. Se você sofre uma violência, ninguém melhor do que você pra dizer o que vai restaurar ou o que vai trazer um alívio, um conforto ou uma resolução para aquela violência, e não o Estado.

A minha leitura é que o processo penal hoje, as prisões e todos os procedimentos de justiça criminal, são um procedimento basicamente vingancista.

O que mais poderia existir no lugar do sistema penal que a gente tem hoje, que é injusto por todas essas coisas que você já explicou?

Eu acho que uma coisa que deveria existir são conselhos julgadores compostos por entes plurais. Então, se determinado crime foi praticado por uma pessoa indígena, você vai ter um juiz branco, uma pessoa da sociedade, e um indígena, para conseguir fazer a análise profunda daquele acontecido. Porque, às vezes, o homem branco não vai ter um entendimento profundo das questões culturais daquela pessoa. Um outro exemplo: como que em um processo de violência sexual, você vai ter toda uma cadeia de atores sendo homens para poder analisar aquela situação, ouvir aquela vítima, trazer um acolhimento, trabalhar de uma maneira não revitimizadora? No conselho julgador você vai ter ali uma autoridade judicial e também uma mulher com relação e interesse no tema.

Não é só adequar aquilo ao tipo penal, é você compreender a subjetividade das pessoas, a pluralidade das questões que estão atravessadas ali, a complexidade do tema, as questões que fogem da lógica do direito, que atravessam a psicanálise, a ciência, entende? Parar de tratar processos como números e tratar processos como pessoas.

Você acha que é possível adotarmos essas mudanças em um país em que muita gente ainda considera que “bandido bom é bandido morto”?

Olha, possível é, difícil também. Obviamente, é muito mais difícil implementar algumas políticas públicas, sobretudo as progressistas, em um país como o Brasil, onde há uma grande massa de população a quem não é dada a possibilidade de estudar, de se conscientizar, de se formar politicamente. Realmente se torna um debate mais difícil, porque o avanço depende que as informações cheguem até aquelas pessoas. Mas eu acho que nem por isso a gente pode desistir, porque seria um atestado de total incompetência: abrir mão do que há de mais comum para uma sociedade democrática, que é o constante debate para construir o que há de melhor.

Você diria que, com a sua atuação e com o IDPN, você está tentando implodir ou transformar as coisas por dentro desse sistema?

Meu objetivo final é esse. Eu costumo brincar que eu adoraria ter que procurar uma outra profissão, sabe? Adoraria que as prisões fossem extintas, que o sistema de justiça fosse encerrado e construído de uma nova forma, e que eu tivesse que aprender tudo do zero.

Eu posso avançar no meio profissional e virar Ministro do futuro governo Lula, e chegar no STF daqui a trinta anos, e ainda assim, eu vou estar lá questionando as mesmas práticas, porque não é a minha entrada isoladamente que vai trazer a mudança estrutural que o sistema precisa. A passagem do Ministro Joaquim Barbosa pelo STF não mudou nada na estrutura, os processos seguem sendo julgados relativizando as questões de raça tal como antes. Então eu não quero chegar lá em cima pra falar mais alto, eu quero que não tenha lá em cima. O avanço pessoal tem que ser reflexo do coletivo e nunca ao contrário, o coletivo que muda estruturas, não o individual.

Você já contou que o seu pai era traficante. Como essa experiência transformou sua visão sobre a justiça e sua atuação como advogado criminalista?  

Eu falo sobre essa história para desmistificar a figura do traficante do comércio varejista de drogas. As pessoas acham que todo traficante é um Fernandinho Beira Mar, milionário, que vai para outro país fazer o tráfico transnacional, ou um homicida, como o rapaz que matou o Tim Lopes. Na verdade, 95% das pessoas que ocupam um cargo no comércio varejista de drogas são jovens negros, periféricos, muitos com famílias desestruturadas, que estão ali basicamente para compor a sua renda. Eu não estou romantizando o comércio varejista de drogas, quero deixar isso bem claro. É uma questão muito mais de subsistência do que de glamour, de fazer patrimônio ou investimento.

É tudo na base do consumismo, né? O moleque que tá ali trabalhando a semana inteira no tráfico, dos R$ 500 que ele vai fazer naquela semana, ele vai dar R$ 100 pra mãe, R$ 100 pra namorada ou esposa e R$300 ele vai gastar no baile tomando uísque e comprando roupa. Ele tá ali se socorrendo da possibilidade financeira que tem – à medida em que é uma pessoa excluída do círculo econômico, social, de profissão e de renda. Porque se esse moleque for deixar um currículo no shopping, ele não vai ser contratado, principalmente se ele tem cabelo raspado ou dread. Ele não tem a possibilidade de buscar um emprego no mercado formal porque o ensino público é precarizado, e o acesso ao ensino superior privado é um funil.

É desse moleque, que é a grande massa do comércio varejista, que eu quero falar. Porque foi ele que morreu na chacina do Jacaré, e na manhã seguinte entrou outro, um primo, um amigo de futebol, alguém da rua no lugar dele. E é ele que está ali morrendo sistematicamente. Ele é uma das 1814 pessoas que a polícia do Rio matou, e ele não oferece nenhum risco à sociedade, ao estado democrático de direito. E, no entanto, a gente segue tratando ele como inimigo do Estado, ao invés de tratar ele como alguém fruto de um processo contínuo e histórico de exclusão e de criminalização. Em uma perspectiva histórica, o comerciante varejista de drogas é a vítima do projeto de construção da figura do negro criminalizado nesse país. Ele não acordou e falou “ah, que legal, meu pai era traficante, eu vou ser traficante também como o filho do Márcio Thomaz Bastos vai ser advogado.” Ele foi empurrado para aquele local como única forma de custeio, porque o pai foi morto há dez anos ou tá preso, a mãe tá trabalhando pra poder bancar ele e quatro irmãos, e a ele é dado um “se vira sozinho”.

Então é esse o ponto que eu vou reforçar. É sair da dualidade entre mocinho e bandido. Fugir dessa aura de que o policial é o mocinho e todo mundo por trás é bandido.

Algumas pessoas perguntaram especificamente sobre o Rio de Janeiro, que está numa situação muito preocupante com o avanço das milícias e do tráfico. Como você imagina que estará o cotidiano da população carioca daqui a 10 ou 20 anos? Tem como melhorar o cenário atual? 

Vai depender de como a gente vai construir a cidade. Quem a gente vai eleger? Outro governador que vai atirar na cabecinha? Vamos simplesmente entender que combater a milícia é matar os Eckos [chefe de uma das maiores milícias do país, morto em junho de 2021] da vida? Porque é isso, morreu um Ecko, tem outro no lugar dele, tal qual foi feito no tráfico. Ou a gente vai entender o processo de milícia e tráfico como algo muito mais profundo e arraigado na sociedade?

A gente precisa primeiro de uma retomada dos territórios por parte do Estado – e não retomada de UPP, com uma ocupação bélica territorial. Uma retomada no sentido de cuidar das pessoas, reabrir equipamentos de lazer, educação, cultura e saúde. Se fazer presente, trazer para aqueles grupos empobrecidos e criminalizados a perspectiva de que há outras formas de sobreviver, de se construir financeiramente e politicamente, para além do comércio varejista da esquina.

E trazer para aqueles grupos que o território deles não vai ser mais um alvo da guerra de drogas. Porque a guerra às drogas não é só o que aparece no Jornal Nacional, tem reflexos no dia a dia, na desvalorização do comércio, nas lojas que ficam fechadas, na luz que acaba e demora treze dias pra Light consertar porque ela está com medo de entrar naquele território. O Estado não propicia que ali seja um território de paz tal qual é no Leblon. O Leblon não é organizadinho porque as pessoas lá são mais bem nascidas, é porque o Estado se faz presente e traz condições materiais para aquelas pessoas construírem, se organizarem e avançarem política, social, material e financeiramente. Tira o Estado de lá e bota cada um por si e Deus por todos para ver se não vai ser tão desregulado quanto o Jacaré, Rio das Pedras ou qualquer outra área abandonada pelo Estado.

Muitos policiais militares são base de apoio do Bolsonaro, e especialistas temem que eles possam se alinhar ao presidente se ele resolver dar um golpe. Você concorda com essa análise? 

As Forças Armadas não podem participar de atos políticos justamente para que elas não sejam cooptadas pelo governo, né? É necessário que as polícias tenham o mesmo compromisso.

O presidente, que guarda vínculo com essa estrutura, que é um ex-militar, ele se vale desse grupo, que compõe os estratos mais baixos da sociedade, ele se vale dessa fraqueza de não ser uma estrutura tão sólida, tão respeitada, tão controlada pelo tecido social como são as Forças Armadas, sabe? Realmente, a gente tem uma polícia bagunçada, quase que autonomizada, que permite essas aventuras, como o Bolsonaro tem tentado. Acho que isso demonstra quanto o Estado brasileiro, e a gente como tecido social, perdeu o controle da polícia.

A gente está em uma encruzilhada. De um lado, ou a polícia se vende a um mercenário de ocasião, que nesse momento é o golpismo do Presidente da República, ou ela vira autônoma e se torna uma milícia, tal qual já acontece em territórios como o Rio de Janeiro. Acho que 2022 é uma janela histórica para tomarmos uma decisão: ou a sociedade e o Estado brasileiro em conjunto tomam o controle firme das suas polícias, ou elas vão se autonomizar, e tender ou para o golpismo ou para a milícia – ou para a milícia golpista, que é o que está no nosso horizonte, infelizmente. Que as instituições sejam efetivamente fortes a ponto de deter isso.

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