Entre os fogos de Copacabana e os de Bangu, no subúrbio do Rio de janeiro, há uma distância quilométrica, algo próximo dos 35 quilômetros. Nada, porém, impediu que o carioca de uma banda se unisse ao de outra no panelaço contra o presidente da República no raivoso pronunciamento do último dia de 2021. Não foi um discurso qualquer, assim como a reação ultrapassou todos as expectativas de bolsonaristas e não bolsonaristas. Nas poucas e desconexas palavras, um Jair Bolsonaro novamente tenso, irritado, distante da versão mais light e sem demonstrar qualquer comiseração com os mortos e desabrigados após as enchentes da Bahia, tampouco com as antigas e novas vítimas da pandemia de Covid-19.
Enfim, o que poderia ser a oportunidade para desejar ao povo um feliz Ano Novo e a esperança do início de um novo ciclo para o Brasil acabou por comprovar o que faz tempo não sai da cabeça da maioria do brasileiro: a certeza da falta de apreço do presidente da República pelo país que diz amar. Como entender um líder nacional que deliberadamente ignora os que sofrem e choram em favor daqueles que enlouquecidamente o idolatram como um totem inanimado e que se diz terrivelmente evangélico. No episódio do “naufrágio” de várias cidades baianas, recebi imagens comparando voluntários com chapéus do MST tentando ajudar famílias de desabrigados na região Sul da Bahia com o presidente cristão passeando de jet ski no litoral de Santa Catarina.
Parecia um grupo denominado escrachadamente de terrorista ensinando os falsos profetas do cristianismo de revista em quadrinhos como socorrer o próximo, independentemente das cores partidárias de quem precisa ser ajudado. É a esquerda perseguida que colabora e sonha com a possibilidade de uma reencarnação contra a direita tacanha e moribunda que persegue, resiste em contribuir e não admite qualquer manifestação de esperança. É o caso de não esquecer que o mandatário está cumprindo com as promessas de um Estado mínimo para alguns (sem remédio, médico, escola, universidade e aposentadoria) e máximo para outros (ministro Paulo Guedes, bancos e grandes corporações).
O cúmulo do despreparo de Jair Messias e de sua imunidade sobre a dor alheia realmente ficou evidente no episódio das chuvas. Para Bolsonaro, de vítima o povo baiano passou a vilão apenas por ser governado por um representante da esquerda. Ou seja, falta ao mito discernimento, conhecimento do cargo, capacidade política, tolerância e competência, muita competência para entender pessoas e gerenciar um país que é de todos. Acima de tudo, é preciso realizar alguma coisa de útil ou interessante para a sociedade. Se fizermos um teste rápido de múltipla escolha sobre os principais feitos do governo será muito difícil – quase impossível – encontrarmos algo que não tenha sido imposto pelo Congresso ou pelo Judiciário, isto é, que tenha surgido como obrigação.
Entre ministros e assessores também seria complicado apontarmos um fora do perfil de subserviência, bajulação, da falta de personalidade e do descaso com a coisa pública. Pelo menos o sumiço do ensaísta, influenciador digital e autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, aliado às saídas dos ministros Eduardo Pazuello (Saúde), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente), estancou parcialmente o período do conservadorismo ideológico e dos discursos racistas e homofóbicos. No entanto, permanece inalterada a sensibilidade do grupo que parece sofrer de paralisia no deserto. Pertencem a esse segmento todos aqueles que não admitem falhas (na verdade mentiras) na cantilena anticorrupção do presidente.
Pior ainda são os “patriotas” pagos para escrever besteiras e formar opiniões contrárias ao que se observa com relativa facilidade. É a tal da retórica descontrolada implantada por apoiadores que se acham marqueteiros em uma campanha infinita. Esses fingem acreditar no que ouvem nos jardins palacianos e não aceitam quando lhes expõem o lado verdadeiro da moeda em que investiram o voto. A verdade é que as promessas não saíram dos discursos. Lembro de uma análise de Marcos Carvalho, principal marqueteiro da campanha de Bolsonaro à Presidência, em 2018. Segundo Carvalho, depois da vitória somente inaugurações de caixas d’água, pontes prontas e obras insignificantes.
E nada mudou até os dias atuais. “Nem na área de segurança, que era uma de suas maiores promessas, algo foi feito”. Logo após assumir, Bolsonaro chegou a dizer disse que sentiriam saudades do seu governo. Talvez os donos de funerárias. Vivemos o novo velho momento da política brasileira. A tese de que o poder é efêmero só é expressada por pessoas que pensam o país como algo de todos. Imaginá-lo de forma absoluta, indissolúvel e como se fosse sua propriedade é próprio daqueles que não sabem brincar, que não admitem alternância e que vivem como intocáveis deuses do Olimpo. Enfim, déspotas, conforme o português mais ortodoxo. Todo mal pelo intestino. De novo no hospital.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978