Apoio ao Coiso
Prostituta respeitosa, Manaus já se esvai sem ser celebridade
Publicado
emHoje quero falar contigo, Manaus, para te dizer que uma cidade, que vota majoritariamente contra seus próprios interesses e que não sabe escolher entre o fascismo e a democracia, é uma cidade desmemoriada. Confesso minha vergonha e minha perplexidade pelos 622.846 votos dados ao Coiso no primeiro turno da eleição presidencial contra 430.562 a seu adversário, embora ignore o peso do orçamento secreto nesta escolha. Manaus votou em quem quer acabar com o voto.
Eleitores “esqueceram” o sofrimento recente de pessoas asfixiadas, sem oxigênio, mortas por quem alardeou que a vacina causava aids e debochou dos que agonizavam com covid. Sem falar na memória da ditadura, que em passado não tão distante, torturou e assassinou, entre outros, o Thomazinho Meirelles e prendeu, entre outras, a Bia, ambos amazonenses, além de realizar uma lavagem cerebral no campo da cultura e da educação.
Uma cidade que ignora seu passado se condena a “cem anos de solidão”. Por isso, para que Manaus tenha “uma segunda oportunidade sobre a terra”, é preciso lembrar que a ditadura militar derrubou, em 1964, o presidente eleito pelo voto popular, suprimiu a eleição direta para presidente e governadores, fechou o Congresso, cassou governadores, ministros do STF e parlamentares, censurou teatro, cinema e música, amordaçou a imprensa: tudo aquilo que hoje é o pesadelo de todos nós e o sonho do Coiso, ele que instituiu o sigilo de cem anos sobre a corrupção e criou o orçamento secreto.
Contra isso lutou Thomazinho, que adorava a paçoquinha da sua mãe, dona Maria. Sua história de resistência já é bem conhecida. A da Bia, não. Deixa que eu te conte quem foi ela. A atriz de teatro Maria de Nazaré Palheta, a Bia, morava na antiga Carolina Neves, hoje rua Elisa Bessa, vizinha do Escabego Lêgo-Lêgo e do Lauro Chibé. No carnaval, ela saía sempre no bloco “eu sozinha”, mascarada e fantasiada, desfilando pelas ruas e becos, cada ano na pele de um personagem diferente.
Foi em 1953 ou 1954 que a Bia, mascarada e vestida de enfermeira, carnavalizou seu entusiasmo dionisíaco e ofereceu carinho e colo às crianças do bairro de Aparecida, entre elas eu e minha irmã Tequinha, que jogamos confete sobre seus cabelos compridos e sua pele de macaxeira. Dez anos depois, quando ela encenou a peça de Sartre A Prostituta Respeitosa, “imprópria para menores”, fingi ter um ano a mais e fui assisti-la, no dia do meu aniversário, no Teatro Amazonas.
O imponente teatro foi inaugurado em 1896, no apogeu da borracha, mas não abrigou um movimento com atores locais para dialogar com a arte importada a peso de ouro pela burguesia de igarapé. Por isso, óperas, comédias e até o “cancan” dos cabarés de Paris sumiram do palco, quando em 1912 a economia entrou em crise. O Teatro Amazonas virou depósito de borracha na 2ª Guerra Mundial. As pelas de látex coagulado ocuparam palco, salão nobre, plateia, camarotes e até o fosso da orquestra, para atender os Acordos de Washington sobre essa matéria prima estratégica. Era a Batalha da Borracha.
– “Belo Teatro. Sua decadência e abandono refletem o drama ou a tragédia da Amazônia” – lamentou o antropólogo Eduardo Galvão. “Uma geração toda naufragou intelectualmente” – concordou Djalma Batista. Só no pós-guerra quando surgiu, enfim, o Teatro Escola Amazonense de Amadores (TEAA), o palco voltou a se iluminar com duas peças encenadas pela Bia.
“Judas no Tribunal” estreou em abril de 1963, com a Bia protagonizando a relatora do processo. A peça, com toques brechtianos, incorporou no corpo de jurados todos os espectadores, 339 dos quais votaram com a relatora, indultando o Iscariotes, contra 286 votos contrários. Ninguém ali apoiava o traidor, é claro, mas a maioria decidiu que quem devia condená-lo “era sua própria consciência, que decretou a pena de morte por enforcamento”.
Os ensaios da outra peça – A Prostituta Respeitosa – começaram pouco antes do golpe militar de 1964, que prendeu artistas, líderes sindicais e estudantis no Quartel do GEF (Grupamento de Elementos de Fronteira) na ilha de São Vicente, o que criou constrangimento ao TEAA. Mas o espetáculo estreou sem problemas no dia 14 de julho, com Bia interpretando Lizzie, a meretriz e, no papel do negro, o ator branco Hélio Ázaro, o corpo enegrecido pintado com pasta de rolha queimada misturada com cerveja.
O cenário dessa peça antirracista é uma cidade no sul dos Estados Unidos. Dois homens negros são acusados de um crime que não cometeram. Um deles é assassinado por um homem branco. O outro foge e se refugia no quarto de Lizzie-Bia, pedindo que ela deponha em seu favor. Um senador e o primo do assassino a pressionam para prestar falso testemunho e incriminar o negro. Ela tenta não tomar partido.
Embora os artistas fossem “amadores”, fiquei deslumbrado como se estivesse na Broadway banhada por um igarapé. É que Manaus não oferecia diversidade teatral para educar o público, que também era “amador”, o que nos deixava sem parâmetros críticos. O sucesso local das duas peças resultou em convites para encená-las no Pará e no Amapá, cujos governadores haviam sido nomeados pela ditadura e não pelo voto popular: coronel Jarbas Passarinho (PA) e general Luís Mendes da Silva (AP).
O governador eleito do Amazonas, Plínio Coelho, foi cassado e em seu lugar nomeado Arthur Reis, que era de direita, mas não era brucutu e incentivou o teatro desde que não fosse por ele contestado. Em Belém, as cinco apresentações foram sucesso de público e de mídia. Mas em Macapá, com o Cineteatro superlotado no dia 7 de setembro, os aplausos dos espectadores foram interrompidos pelo general Mendes da Silva que, imbrochável, subiu ao palco e vociferou um discurso delirante e racista transcrito por Gebes Medeiros (O Jornal, 19/09/1964):
– Povo do Amapá. Este espetáculo é uma afronta aos nossos brios revolucionários. Esta peça é autenticamente comunista e esses moços certamente estão contaminados pelo credo vermelho. Qual dos senhores espectadores possui uma filha para casar com um negro? Tudo que está na peça é falso. Não existe prostituição nos Estados Unidos. Eu estive lá.
Ele esteve lá, não viu prostituição, nem a bandeira do país. A polícia prendeu os atores e levou-os em um camburão para a Delegacia. “Ficamos incomunicáveis, com dois policiais vigiando os nossos mínimos gestos” – conta Gebes. Os meganhas entraram nos quartos do hotel e revistaram todas as maletas, embrulhos, material cenográfico, guarda-roupas. Entre os documentos apreendidos, havia um diário íntimo da Bia e uma bandeira com estrelas, desconhecida das autoridades:
Chefe de Polícia – Que faz essa bandeira tão escondida em sua pasta? O que ela representa? É a bandeira de alguma República Comunista?
Gebes – (responde entredentes, como se estivesse representando no palco) É a bandeira do meu Estado. Do Amazonas. Era um presente ao governador.
Narrado de forma exemplar no livro escrito por Selda Vale e Ediney Azancoth, o episódio “não era fruto apenas do autoritarismo de um governador neurótico, ignorante e débil mental, mas parte de um esquema de repressão que se generalizava no Brasil contra os grupos de teatro, artistas, intelectuais, jornalistas, estudantes, sindicalistas”.
Manaus, a chuva de ontem continua molhando hoje teus filhos, como comprova o discurso racista da atual diretora do Teatro Amazonas, Sigrid Cetraro, que viralizou. Ela entroniza a bestialidade e nos faz retroceder ao tempo em que os fantasmas saltitavam sobre as pelas de borracha. Para que amanhã a chuva não afogue teus netos, sua demissão do cargo foi pedida em nota de repúdio assinada por artistas e representantes do Conselho de Cultura do Estado.
– “Mais efêmera ainda do que a curta memória do sofrimento passado é a imaginação projetada do sofrimento que ainda virá. Devemos combater a apatia daqueles que nada fazem contra o que os espera” – escreve Brecht, que nos leva a formular algumas perguntas:
Seremos asfixiados outra vez, no plano local, por um réu acusado de fraude ao comprar respiradores de uma importadora de vinhos e que se tornou cúmplice, no plano nacional, de um comprador de dezenas de imóveis com dinheiro vivo? Depois de nos asfixiar fisicamente, retirarão o oxigênio intelectual das manifestações culturais? Tem razão o poeta Aldísio Filgueiras ao dizer que “essa Manaus que se vai, já se esvaiu há muito tempo, quando da seringueira se extraiu a última gota de látex”?
Brecht insiste e nós com ele:
– Ninguém vai me convencer de que é inútil apelar para que as pessoas raciocinem contra seus inimigos. Vamos repetir sem cessar aquilo que já foi dito mil vezes, para não corrermos o risco de deixar de dizer uma vez menos do que é necessário: quem esquece o passado, dele não poderá escapar”.
A alternativa é matarmos ontem a ave agourenta com uma pedra que ainda vamos atirar nas urnas no dia 30 de outubro, à semelhança do oriki citado por Pierre Verger. Que a memória do Thomazinho, da Bia e das pessoas asfixiadas nos salve. Que o nascimento de Simón Luiz na quinta-feira (6/10), filho da candidata a vice-governadora Anne Moura, simbolize a virada. Que o recém-nascido “corrompa com sangue novo a anemia, infeccione a miséria com vida nova e sadia“, como canta João Cabral:
“Que o entusiasmo conserve vivas/suas molas/e possa enfim o ferro/comer a ferrugem/o sim comer o não”.